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Read Ebook: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 05 by Herculano Alexandre
Font size: Background color: Text color: Add to tbrJar First Page Next Page Prev PageEbook has 185 lines and 47875 words, and 4 pages? pois na separa??o de Portugal do reino leonez que a nossa historia come?a: tudo o que fica al?m d'esta data pertence, n?o a n?s, mas ? Hespanha em geral: ? essa a primeira balisa para a divis?o das nossas ?pochas. Em dois grandes cyclos me parece dividir-se naturalmente a historia portugueza, cada um dos quaes abrange umas poucas de phases sociaes, ou ?pochas: o primeiro ? aquelle em que a na??o se constitue; o segundo o da sua rapida decadencia: o primeiro ? o da edade m?dia; o segundo o do renascimento. Limitar-me-hei n'estas cartas a fallar do primeiro cyclo, porque o julgo o mais importante, ou antes o unico importante, se considerarmos a historia como sciencia de applica??o. Antes de dividir e characterisar os seus differentes periodos, seja-me licito fazer algumas reflex?es geraes sobre ambos os cyclos. N'ellas est?o os fundamentos da importancia exclusiva que attribuo ao primeiro. Arriscadas parecer?o talvez estas opini?es; mas, se n?o me engano, o exame dos factos nos ha-de conduzir ? demonstra??o d'ellas. As na??es s?o em muitas coisas similhantes aos individuos: facil f?ra instituir, n?o poeticamente, mas como todo o rigor philosophico, muitas analogias entre a sociedade e o homem physico. No individuo, cuja organisa??o ? viciosa ou incompleta, a edade viril passa rapida, e quasi sem intermiss?o se decae da mocidade para o pender da velhice: ? esta uma verdade physiologica. Dae a qualquer sociedade uma organisa??o incompleta, errada, ou sequer extemporanea; torcei-lhe as tendencias do seu modo de existir primitivo; vergae os elementos sociaes, concordes com esse modo de existir, a uma formula politica em parte diversa; e ficae certos de que esse vicio de constitui??o n?o tardar? em produzir seu fructo de morte. A raz?o, bem como a experiencia dos seculos, d? pleno testimunho d'esta verdade. Resta saber se ella ? applicavel ao nosso objecto. Estas perguntas, que examinadas superficialmente parecem destruir a these que estabeleci, occorrem naturalmente; e todavia pouca reflex?o basta para vermos que n?o teem grande valor, emquanto subsequentes averigua??es nol-as n?o demostram de nenhum momento. Se quizermos attender ? data, em que os primeiros symptomas palpaveis e definidos da decadencia do nosso poder e gloria come?am a apparecer claramente, ver-nos-hemos for?ados a confessar um facto, que de algum modo responde a todas essas perguntas.--A gera??o, a quem verdadeiramente pertence tanta gloria, foi educada pelo seculo anterior. Os grandes homens do reinado de D. Manuel tinham conhecido o nosso ultimo rei cavalleiro; tinham sido educados na ?pocha da robustez moral da na??o. O seculo decimo sexto nada mais fez que aproveitar a heran?a da edade m?dia. As phases da vida dos povos s?o incomparavelmente mais lentas que as da vida humana: n'esta ? edade viril segue-se a edade grave, ? edade grave a velhice, ? velhice a decrepidez, ? decrepidez a morte; e essas mudan?as demandam ?s vezes meio seculo. Foi o que bastou ?s glorias de Portugal para descerem do apog?u ao occaso. Para ellas chegarem ? sepultura em 1580, n?o devia ter a na??o declinado, ao menos moralmente, desde D. Manuel? Reflict?mos nos derradeiros momentos de quatro famosos capit?es portuguezes, que viveram em diversas ?pochas. N'essas quatro horas de agonia me parece ver um symbolo do periodo que abrange a virilidade, edade grave, velhice, e decrepidez da na??o portugueza. Este symbolo resume, se n?o me engano, a historia da transforma??o moral d'esse periodo. Em 1449 o conde d'Abranches, Alvaro Vaz d'Almada, expira em Alfarrobeira, rodeado de cadaveres e can?ado de derribar seus contrarios, defendendo a honra e innocencia do grande infante D. Pedro; porque, cavalleiro, cria na virtude d'outro cavalleiro, do seu amigo, a quem antes da batalha, cujo exito d'antem?o ambos sabiam, jur?ra sobre a hostia consagrada n?o sobreviver. Em 1515 Affonso d'Albuquerque, o maior capit?o do mundo, af?ra Cesar e Bonaparte, depois de estampar as quinas como em signal de servid?o na fronte da Asia, e de obter dos infieis o nome de le?o dos mares, morre de desgosto, por ver turbada contra si a face do monarcha; morre, crendo que um enr?do mesquinho de cortez?os p?de offuscar a sua gloria, que allumia a terra; morre, porque se desconhecem seus servi?os. Em 1548 D. Jo?o de Castro acaba jurando que n?o roubara um cruzado ? fazenda publica, nem acceitara uma s? peita para torcer a justi?a. Era necessario o juramento do moribundo para que passasse pura ? posteridade a memoria de um homem honesto. Em 1579 D. Jo?o Mascarenhas, coberto de c?s e farto de recompensas, calca aos p?s a cor?a de loiros que obtivera em Diu, e como o mais vil usurario estende da Borba do sepulchro a m?o descarnada para receber de Castella o pre?o, por que vendera a patria; e expira, se n?o cheio de remorsos, ao menos rico de oiro e ignominia. Em 1580 a independencia de Portugal n?o existia: e o Diabo do Meio-dia, por me servir da frisante denomina??o dada por Sixto 5.^o a Philippe II, reinava em todas as Hespanhas. As differentes circumstancias companheiras da hora extrema de quatro homens eminentes, d'essa hora em que o espirito se mostra n? aos olhos da posteridade, revelam o seu estado moral e as suas convic??es, e n'elle e n'ellas o estado moral e as convic??es da gera??o a que pertenceram. No primeiro ha uma individualidade vigorosa, que tem f? na propria virtude e no testimunho da consciencia. No segundo ha ainda a virtude, mas n?o ha a consciencia d'ella; substituiu-a o juizo do monarcha: a gloria cr? precisar da confirma??o dos cortez?os; cr? precisar de um diploma que a legalise. No terceiro ha tambem virtude, mas j? como que duvidosa de si; a individualidade desappareceu completamente; o homem nobre e virtuoso cr? que o seu nome se hade submergir na corrup??o geral que o cerca, e ergue-se no seu leito de agonia para bradar aos vindoiros: < Eis aqui porque eu considero todo o seculo decimo-sexto como um seculo de decadencia. O vi?o da arvore dura algum tempo depois de se lhe haver entranhado o gusano no ?mago do tronco; porque as folhas nasceram e crearam-se quando a seiva ainda era pura. ? ap?s isso que as folhas amarellecem e caem; os ramos engelham e torcem-se; o tronco secca e apodrece. Ent?o passa o s?pro das tempestades, e a arvore desaba em terra. Nas considera??es que fiz, n'esta rapida e necessaria digress?o sobre o verdadeiro character do seculo decimo sexto, est?, mais que no respeito ? chronologia, a raz?o para havermos de preferir o estudo da edade m?dia ao do seculo das nossas glorias. No estudo da ?pocha vulgarmente chamada do renascimento, nome que talvez s? por antiphrase ou cruel escarneo lhe conviria, f?ra preciso fechar os olhos ao brilho de apparentes grandezas, e allumiar com o facho da historia o corpo enfermo da sociedade portugueza, que apressava a sua hora de morrer com a febre das conquistas. Seria necessario v?-lo desmaiar e definhar-se esmagado debaixo do p?so da sua grandeza, e depois descer ao sepulchro carcomido pelo cancro da propria corrup??o moral. Mais um motivo pessoal ? esse para nos esquecermos d'elle. Para fartar de amargurar os cora??es que amam a terra da patria, n?o ? necessaria a historia; sobra-nos a vida presente. Mas a raz?o capital da preferencia, que devemos dar ao estudo da edade media, est? no que ha pouco ponderei ?cerca dos fins objectivos da historia. Nem descobrimentos, nem conquistas, nem commercios estabelecidos pelo privilegio da espada, nem o luxo e magestade de um imperio immenso, nos podem ensinar hoje a sabedoria social. Os instinctos maravilhosos de uma na??o que tende a constituir-se; as luctas dos diversos elementos politicos; as causas e effeitos do predominio e abatimento das differentes classes da sociedade; os vicios das institui??es incompletas e incertas, que obrigaram n?o s? nossos av?s, mas toda a Europa, a deixar o progresso natural e logico da civilisa??o moderna para se lan?ar na imita??o necessaria, mas bastarda, da civilisa??o antiga; a existencia emfim intellectual, moral, e material da edade media ? que p?de dar proveitosas li??es ? sociedade presente, com a qual tem muitas e mui completas analogias. Abstrai?mos, com effeito, da enorme distancia de civilisa??o que nos separa d'esses tempos; abstrai?mos da quasi constante antinomia entre a vida civil da edade media e a vida civil actual, e consideremol-as ambas unicamente nas suas tendencias politicas. Dizei-me: n?o ha uma parecen?a notavel entre t?o afastadas ?pochas? Imaginae um periodo da historia do genero humano, em que os diversos principios de governo se combatessem sem cessar, buscando enfraquecer-se mutuamente, equilibrando-se por algum tempo, vencendo-se por fim uns aos outros, e achando brevemente na victoria a propria ruina. Imaginae um periodo, em que as cren?as politicas fossem convertidas em odios implacaveis, herdados muitas vezes de paes a filhos; em que as garantias sociaes estivessem muitas vezes nas leis e faltassem quasi sempre nos factos; em que cada uma das classes accusasse as outras de oppressoras, iniquas, violentas, quando subjugada, e fosse iniqua, oppressora, e violenta apenas obtivesse o poder; em que a espada do homem de guerra resolvesse frequentemente os problemas politicos, e em que ao mesmo tempo a superioridade intellectual do individuo tivesse commummente mais ac??o nas phases da sociedade que a auctoridade publica; em que se junctassem no mesmo povo, na mesma classe, e at? no mesmo homem, os extremos de nobres affectos e da corrup??o e maldade mais torpes. Imaginae um periodo com estes caracteres, e buscae-o depois na historia. Onde ? que o encontrae? Na edade media. Mudae agora uma palavra; chamae ?s classes partidos--e essa mudan?a ser? apenas de nome, porque os partidos representam os interesses diversos das diversas classes--e dizei-nos a que ?pocha vos parece quadrarem taes caracteres? Indubitavelmente ? nossa. Porque taes coincidencias em tempos distantes? Examinel-o; que em similhante exame acharemos mais um motivo para estudarmos com preferencia os quatro primeiros seculos da sociedade portugueza. A edade media foi o largo e custoso lavor da Europa para transformar a unidade do imperio romano na individualidade dos povos modernos. A organisa??o do imperio era essencialmente falsa e absurda; as suas partes eram heterogeneas. Se assim n?o fosse, a furia dos barbaros septemtrionaes, ou se teria quebrado embatendo nas fronteiras, ou apenas teria trazido ao seu seio o mesmo que as invas?es dos tartaros na China--apenas revolu??es dynasticas. Se a alluvi?o d'homens do norte n?o desmembrasse o imperio romano, desmembrar-se-hia elle por si. Mais tarde ou mais cedo as ra?as diversas que o compunham, sem o constituirem, se haviam de separar, e reconstituir-se na sua individualidade, se as tribus septemtrionaes n?o viessem substituir a ac??o vigorosa e rapida da conquista ? ac??o branda e lenta do tempo. O restabelecimento da variedade sobre as ruinas da unidade absoluta ? o grande principio que a meu ver a edade media representa: esse principio est? impresso na maior parte das f?rmas sociaes, nas institui??es, na separa??o dos idiomas, e at? na litteratura. Por dez seculos a Europa, que f?ra romana, n?o fez mais de que agitar-se ? roda d'este principio. Da profunda ignorancia em que, como era natural, ella caiu ao expirar da civilisa??o antiga, nasceu a sua impotencia para o fazer predominar duravelmente nos varios aspectos da vida das na??es: mas as na??es ficaram. As diversas nacionalidades, separadas por caracteres profundamente distinctos, foram o unico resultado importante de mil annos de luctas, de revolu??es, d'incertezas. Foi s? isto que o renascimento n?o soube nem p?de condemnar como abus?o e mentira. Porque cumpre confessar que, se o absolutismo pesou duramente na Europa, tambem facilitou de um modo admiravel a liga??o e harmonia do corpo social. A edade media dividira por limites quasi indestructiveis as differentes nacionalidades; fizera-as, como disse, existir entre si: o principio caracteristico do socialismo moderno--a variedade--tinha sido n'esta parte, sen?o um pensamento, ao menos um instincto imperioso, definido, claro e activo; mas a nacionalidade, repito, n?o existia em si ou para si. A variedade ia at? o individualismo, isto ?, separava ou antes fazia inimigas as classes, as hierarchias, as povoa??es do mesmo paiz, os individuos da mesma povoa??o; e d'este modo aquelle principio, que estrem?ra os povos, tendia a annullar a propria obra, levando ao excesso a sua intolerancia contra o principio opposto. Todos os seculos teem ufanias v?s e infundadas: uma das do nosso, que pertence a esta especie, ? a de havermos sido inexoraveis liveladores de direitos e condi??es. Enganamo-nos. Mil vezes mais que n?s o foi o grande principio de unidade politica chamado monarchia absoluta. N?s aniquil?mos alguns privilegios, que elle conserv?ra, porque eram mais d'apparato que de substancia: n?s derrib?mos meia duzia de tripodes, onde alguns vangloriosos se empoleiravam, porque, pobres tacanhos, precisavam d'isso para que os v?ssemos. A monarchia derribou gigantes; partiu em peda?os miudos a escada immensa do privilegio. Verdade ? que metade d'esses privilegios eram foros de liberdade, que pertencem a todos os homens; mas, como j? disse, a edade media lhe ensin?ra que a servid?o mais abjecta s? deixava d'existir por privilegio, e a monarchia n?o podia assim esquecer t?o repetida li??o. N?o consente o bom methodo que antecipe aqui o desenvolvimento das id?as que em resumo tenho apontado; por isso limitar-me-hei a s? mais uma observa??o. O principio da liberdade pertence incontestavelmente ? edade media, porque, se n?o me engano, a liberdade n?o ? mais que a facilita??o da variedade nos actos humanos, e a variedade ?, como tenho repetido, o caracter essencial d'essa ?pocha. O principio da egualdade dos direitos e deveres f?l-o por?m surgir, e converteu-o em facto geral, o predominio da monarchia. Esta condi??o social, que nos parece hoje t?o inconcussa, t?o obvia, n?o poderia subsistir na ?pocha da completa desegualdade. Era necessaria a existencia d'uma entidade politica que, estando acima de toda a sociedade, tendesse constantemente a nivelar, pelo menos em rela??o a si, as outras entidades, e que finalmente o alcan?asse. Era preciso que a opini?o do poder divino dos reis chegasse a sanctificar-se com a decisiva victoria do elemento monarchico, para a egualdade civil se comprehender. As id?as actuaes a este respeito s?o apenas a conclus?o inteira de certos postulados, dos quaes a monarchia tir?ra principalmente as consequencias relativas a si. Obrigado, pelo empenho que tomei de mostrar a importancia do grande cyclo historico chamado edade media, a fazer sentir que o posterior a elle foi um periodo de decadencia, e por isso for?ado a representar em parte os males sociaes produzidos pela monarchia absoluta, era necessario que mencionasse egualmente os factos que abonam o seu triumpho. Pesar uns e outros, e comparal-os pela totalidade dos seus resultados, careceria d'averigua??es que n?o tenho feito, e de um grau de perspicacia que provavelmente n?o possuo. Foi por isso que j? confessei ignorava se esse grande acontecimento tinha sido um mal ou um bem, contentando-me com saber que havia sido uma necessidade. As considera??es que fiz me parecem indical-o sufficientemente. No proseguimento d'estas cartas espero que achemos provas completas d'estas simples indica??es. Um reparo se p?de fazer ainda ?cerca da id?a fundamental sobre que tenho procurado fixar a atten??o do leitor, isto ?, sobre a conveniencia de se estudar exclusivamente, ou pelo menos com preferencia, a historia da edade media, se do estudo da historia queremos tirar applica??es para a vida presente. Este escrupulo, analogo ao que resulta da grandeza apparente do seculo decimo sexto, e da ac??o vigorosa da unidade absoluta predominando exclusivamente na organisa??o politica d'essa ?pocha, resolve-se por um modo tambem analogo ?quelle de que me servi para resolver o primeiro. Se a monarchia absoluta como elemento politico trouxe reformas necessarias; se ? verdade que lhe devemos principalmente o haver dado nexo a este corpo moral chamado na??o, o ter feito nascer e progredir at? certo ponto a egualdade civil e a centralisa??o administrativa; ser? por ventura escusado o conhecimento da sua influencia na organisa??o social? N?o dever? esse conhecimento ser mais profundo e exacto, se o buscarmos na ?pocha em que a ac??o politica da monarchia era unica, e em que todas as resistencias dos outros elementos tinham desapparecido, ou estavam subjugadas pela preponderancia illimitada da cor?a? E n?o ? ao seculo decimo sexto e aos dous seguintes que pertence este grande facto? Eis-aqui, pois, ainda outra difficuldade, que se p?de opp?r ? minha theoria; difficuldade que apresentei com toda a for?a de que ? susceptivel. Esta for?a, por?m, achal-a-hemos s? apparente, se quizermos attender ao verdadeiro modo de considerar a quest?o de que hoje nos occupamos. Atravez de toda a edade media, em que o christianismo, conjurado n'essa parte com os costumes dos barbaros, bradava independencia e liberdade ? corrupta civilisa??o antiga, esta lhe respondia com o brado de ordem e paz. Trinta gera??es vacilharam entre estes dous gritos, que ambos soavam nos cora??es; porque ambos representavam as primeiras precis?es sociaes. Por fim os povos, cansados do vacillar de mil annos, cairam, como era natural, aos p?s da paz e da ordem. As necessidades, para as quaes offerecia remedio a civilisa??o romana, tinham-se tornado mais fortes no meio de tantas luctas para as unir com as que nasciam da civilisa??o do evangelho e do instincto da natureza. A monarchia mostr?ra sempre, no meio d'essas largas e trabalhosas tempestades humanas, que era a herdeira das tradi??es do imperio; a unidade do poder prov?ra por muitas vezes que ella s? possuia o segredo da paz e da ordem publica. D'ahi veio o seu inevitavel triumpho. No estudo da edade media portugueza acharemos uma prova incontestavel d'estas observa??es. Veremos a lei civil geral substituida gradualmente ? lei civil local; o systema de fazenda dos tributos geraes substituido ao irregular das contribui??es de foral; a administra??o do estado nascer sobre as ruinas das administra??es do municipio e do senhorio quasi feudal, tudo por influencia da cor?a; e veremos tambem d'essas causas, e d'outras analogas a ella, resultar a ordem e a organisa??o do nosso paiz. ? ahi que n?s pod?mos comprehender o elemento monarchico; ? ahi que a sua ac??o apparece energica, civilisadora, progressiva; ? ahi que elle disputa o predominio aos outros elementos, e que se faz popular annullando-os. Obtido o triumpho, assemelha-se a todos os vencedores: degenera e corrompe-se nos ocios da victoria; s?e das raias de organisador, e converte-se em oppress?o. Nem d'outro modo podia acontecer: elle representava unicamente a ordem e a paz, e os elementos d'onde podia nascer a independencia e a liberdade tinham sido completamente esmagados ou constrangidos ao silencio. Eis de que modo a propria monarchia, considerada como principio social, como elemento de civilisa??o, se deve com preferencia estudar na ?pocha em que se preparava, mas ainda n?o existia, o seu predominio absoluto. Eis-nos assim outra vez encerrados no cyclo da edade media, do qual parecia que ella nos obrigaria a sair. RESPOSTA ?S CENSURAS VILHENA SALDANHA Ajuda, 8 de Abril de 1846. < Apesar, por?m, da necessidade que tenho de guardar silencio em defesa propria, n?o posso acabar comigo que cerre aqui o discurso. Ha tanta cortezia no artigo do seu collaborador, que seria talvez pouco decente o recusar comparecer no tribunal aonde me cita. Ha juizes por quem o reu condemnado conserva respeito: ha outros que elle detesta ainda depois de absolvido. N'aquelles a nobreza do animo e a honestidade de proceder explicam o phenomeno; n'estes explicam-no a rudeza do entendimento e a brutalidade ou injusti?a nas f?rmas. Pertence ao numero dos primeiros o nobre censor a quem me refiro; por isso assentar-me-hei por algum tempo no banco dos criminosos para lhe responder. Duas pondera??es graves ha no artigo, a que alludo, contra o meu livro: pondera??es que a serem exactas importariam a accusa??o merecida de haver eu defraudado a na??o da sua arvore genealogica, e d'um dos mais importantes feitos d'armas--a conquista da cidade que veio a ser a capital da monarchia. Culpa da vontade ou culpa da intelligencia; fosse o que fosse, o livro era condemnavel. Puz a doutrina, e acceito-a em todo o rigor para mim: mas o que n?o acceito, sem que o digno auctor do artigo do seu jornal as reconsidere, s?o as provas que apresentou contra mim. Estabeleci por tres modos a n?o identidade dos lusitanos com os portuguezes: n?o identidade de territorio; n?o identidade de ra??o; n?o identidade de lingua. O auctor do artigo sentiu como eu que, na falta complexa d'estes tres principaes caracteres dos que distinguem a individualidade das grandes familias humanas chamadas na??es, a sua unidade na success?o dos tempos desapparecia. Tratou, portanto, de provar-me que n?o era essa unidade uma simples preoccupa??o sem fundamento historico. Procurarei examinar os seus argumentos com a brevidade e clareza possiveis. Tractando da prova de n?o identidade deduzida da transforma??o das ra?as, o auctor do artigo por paridade de circumstancias estende as conclus?es, que d'ahi tirei para provar a minha doutrina, ? Inglaterra e ? Fran?a. Essa objec??o nenhuma for?a me faz. Creio tanto que por este lado os inglezes e os francezes representem os kimhris e os gaels, como creio que n?s representamos os lusitanos. A historia incertissima d'esses povos s? pertence ? Fran?a e ? Inglaterra por identidade de territorio. ? uma consola??o para os genealogicos d'aquellas duas na??es que n?o estou resolvido a invejar-lhes. Quanto ? lingua n?o contesta o meu contendor que a origem da nossa seja a romana: o que affirma ? que a mudan?a essencial de lingua n?o prova a mudan?a essencial de ra?a. Uma cousa que desejava me explicasse era porque n'aquellas partes da Hespanha, da Fran?a, e da Inglaterra, onde pela historia sabemos que as conquistas e colonisa??es successivas d'estranhos n?o poderam no todo ou na maior penetrar ou fixar-se, os dialectos que ainda ahi se fallam hoje discordam absolutamente das linguas geraes d'estes paizes e se derivam das primitivas. Tracto com os conquistadores mais civilisados tiveram-no sempre os welshes, os bret?es, os biscainhos: a differen?a esteve s? em n?o se estabelecerem fixamente entre elles os novos senhores do seu paiz. Uma cousa me ha-de conceder o nobre critico, e ? que os lusitanos, t?o curiosos de n?o deixarem perder a sua casta no meio de tantas revolu??es e da entrada de tantas gentes estranhas por vinte e cinco ou trinta seculos, andaram um pouco descuidados n'este negocio da lingua. Pelo que respeita a dialectos, e a grammaticas, e a artes, e a medalhas anteriores ao dominio romano, falta provar que isso tudo ? vestigio, n?o dos phenicios, gregos e carthaginezes, que se haviam estabelecido na Peninsula antes dos romanos, mas sim das tribus celticas. Quanto ?s medalhas de lettras desconhecidas, permitta-me o atilado censor que, com Peres Bayer e Masdeu, antes as tenha por phenicias, punicas, gregas, e ainda latinas, do que por celticas. N?o chamei selvagens ?s tribus da Hespanha antes da civilisa??o romana: chamo-lh'o antes de toda a civilisa??o, quer phenicia, quer grega, quer carthagineza, quer romana. N?o est? mais na minha m?o: cada vez que fallo n'um lusitano, n'um callaico, n'um pelend?o, n'um arevaco, dos primitivos e puros, figura-se-me logo um aymore, um tapuia, um tupinamba, serapintado e cuberto de pennas, de quem juro que nenhum dos actuaes brazileiros quer ser descendente; e o mais ? que lhe acho alguma raz?o, apesar de que teem decorrido pouco mais de tres seculos desde o tempo em que no Brazil s? havia d'essa gente, e desde que ahi se teem estabelecido colonias, n?o de cinco povos civilisados e de seis ou sete barbaros, mas s? de portuguezes e at? certo ponto de hollandezes. Nunca pensei que os lusitanos me fizessem tornar a escrever tanto na minha vida! Vamos a assumptos mais serios. A segunda para da censura involve uma quest?o de critica historica. Na opini?o do nobre censor a minha n?o foi das melhores quando narrei a tomada de Lisboa. Vejamos porque: Eis as objec??es criticas ? narrativa da tomada de Lisboa. N?o alterei sen?o a ordem d'ellas, porque me facilita o resumir-me na resposta. ? natural, n?o o nego, que pertencendo Arnulfo e Dodechino ao corpo dos cruzados se mostrassem mais attentos a narrar as fa?anhas dos seus que as dos portuguezes; mas que queria o nobre auctor da censura que eu fizesse? Que inventasse outras para attribuir a Affonso Henriques e aos seus guerreiros? De certo n?o. O que me cumpria era examinar se a narrativa dos dois estrangeiros continha alguma cousa improvavel para a rejeitar. Aponte-me, por?m, o que ha improvavel no que aproveitei d'essa narrativa. ? omissa a respeito dos portuguezes? Mas estes podiam fazer maravilhas sem que os estrangeiros deixassem de praticar o que d'elles contam os dois cruzados. Do que eu n?o tenho culpa ? de que n?o chegasse at? n?s a memoria de taes maravilhas. A historia de vacillarem os portuguezes no eirado da torre de madeira, nem ? improvavel, nem os deshonra. Elles estavam habituados a combates campaes e n?o a assedios regulares de grandes pra?as. O testemunho de escriptor coevo, Ibn-Sahib, nos assegura que o systema ordinario do rei de Portugal para se apoderar dos castellos mussulmanos era o dos commettimentos nocturnos e inesperados, n?o o dos sitios regulares. Accresce, como consola??o, que esta circumstancia mostra terem entrado em combate os portuguezes no dia do ataque decisivo. Entre Santarem e Lisboa havia gente moura: O monstruoso e desconnexo d'este raciocinio ? obvio. Quanto ao passar Affonso Henriques por onde n?o podia passar, dir-se-ha que elle fez um quarto de conversa??o ? direita e marchou por Loures sobre Lisboa. Isso, na supposi??o de estar fortificada a passagem de Sacavem, ou de n?o haver ahi passagem , ocorre facilmente; mas ? preciso confessar que os engenheiros sarracenos, que empregaram bra?os e dinheiro em fazer uma obra que n?o defendia nada, nem servia para nada, mereciam pingados e aspados, segundo a forma espedita da justi?a mussulmana, para os seus collegas tomarem tento em n?o malbaratarem assim os morabitinos do Estado em destemperos de taipa e pedregulho. O sr. C?rdenas sustenta como verdade historica ter sido a Hespanha occidental, similhante n'isto aos estados do centro da Europa, um paiz feudal. Tolera-se esta doutrina nos discursos parlamentares, nos artigos da imprensa politica, nos escriptos de certos publicistas que sabem, com mais ou menos arte, fazer das suas generalisa??es semi-poeticas um leito de Procusto para a Historia. Em trabalho, por?m, de consciencia e circumspecto, emprehendido por um membro da corpora??o ? qual na Hespanha especialmente incumbem as investiga??es d'esta natureza, a affirmativa que tende a manter similhante doutrina n?o passar?, por certo, n'aquelle paiz, sem o devido reparo. Entretanto, a Portugal, que, bem como Castella, traz a sua origem da monarchia ovetense-leoneza, t?ca tambem intervir n'uma quest?o que, resolvida no sentido da opini?o do sr. C?rdenas, parece-me viria collocar a luz falsa as primitivas institui??es d'este paiz. Assim, em quanto outros mais habilitados guardam silencio, seja-me l?cito a mim, para quem taes estudos s?o hoje apenas reminiscencias, indicar algumas especies que possam esclarecer o assumpto. Eis o que a similhante proposito nos diz o sr. C?rdenas: Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page |
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