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Munafa ebook

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Read Ebook: A Cidade e as Serras by Queir S E A De

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Ebook has 1208 lines and 65196 words, and 25 pages

fumadores entre palmeiras, como n'um terrasso santo de Benares, esparziam um vapor, aromatisando e salutarmente humedecendo aquelle ar delicado e superfino.

Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado s?r:

--Eis a civilisa??o!

Jacintho empurrou uma porta, penetramos n'uma nave cheia de magestade e sombra, onde reconheci a Bibliotheca por trope?ar n'uma pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo ro?ou de leve o dedo na parede: e uma cor?a de lumes electricos, refulgindo entre os lavores do tecto, alumiou as estantes monumentaes, todas d'ebano. N'ellas repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques d'ouro, hirtos na sua pompa e na sua auctoridade como doutores n'um concilio.

N?o contive a minha admira??o:

--Oh Jacintho! Que deposito!

Elle murmurou, n'um sorriso descorado:

--Ha que l?r, ha que l?r...

Reparei ent?o que o meu amigo emmagrecera: e que o nariz se lhe afil?ra mais entre duas rugas muito fundas, como as d'um comediante can?ado. Os anneis do seu cabello lanigero rareavam sobre a testa, que perdera a antiga serenidade de marmore bem polido. N?o frisava agora o bigode murcho, cahido em fios pensativos. Tambem notei que corcovava.

Elle ergu?ra uma tape?aria--entramos no seu gabinete de trabalho, que me inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os divans, as madeiras, eram verdes, d'um verde profundo de folha de louro. S?das verdes envolviam as luzes electricas, dispersas em lampadas t?o baixas que lembravam estrellas cahidas por cima das mesas, acabando de arrefecer e morrer: s? uma rebrilhava, n?a e clara, no alto d'uma estante quadrada, esguia, solitaria como uma torre n'uma planicie, e de que o lume parecia ser o pharol melancolico. Um biombo de laca verde, fresco verde de relva, resguardava a chamin? de marmore verde, verde de mar sombrio, onde esmoreciam as brazas d'uma lenha aromatica. E entre aquelles verdes reluzia, por sobre peanhas e pedestaes, toda uma Mechanica sumptuosa, apparelhos, laminas, rodas, tubos, engrenagens, hastes, friezas, rigidezas de metaes...

Mas Jacintho batia nas almofadas do divan, onde se enterr?ra com um modo can?ado que eu n?o lhe conhecia:

--Para aqui, Z? Fernandes, para aqui! ? necessario reatarmos estas nossas vidas, t?o apartadas ha sete annos!... Em Gui?es, sete annos! Que fizeste tu?

--E tu, que tens feito, Jacintho?

O meu amigo encolheu mollemente os hombros. Viv?ra--cumprira com serenidade todas as func??es, as que pertencem ? materia e as que pertencem ao espirito...

--E accumulaste civilisa??o, Jacintho! Santo Deus... Est? tremendo, o 202!

Elle espalhou em torno um olhar onde j? n?o faiscava a antiga vivacidade:

--Sim, ha confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda est? mal apetrechada, Z? Fernandes... E a vida conserva resistencias.

--V? ahi o telegrapho!... Ao p? do divan. Uma tira de papel que deve estar a correr.

Depois, consultando um relogio monumental que, ao fundo da Bibliotheca, marcava a hora de todas as Capitaes e o curso de todos os Planetas:

--Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, n?o, Z? Fernandes? Tens ahi os jornaes de Paris, da noite; e os de Londres, d'esta manh?. As Illustra??es al?m, n'aquella pasta de couro com ferragens.

Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava ? minha profanidade serrana todos os gostos d'uma inicia??o. Aos lados da cadeira de Jacintho pendiam gordos tubos acusticos, por onde elle decerto soprava as suas ordens atrav?s do 202. Dos p?s da mesa cord?es tumidos e molles, colleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra ? maneira de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e reflectida no seu verniz como na agua d'um po?o, pousava uma Machina-de-escrever: e adiante era uma immensa Machina-de-calcular, com fileiras de buracos d'onde espreitavam, esperando, numeros rigidos e de ferro. Depois parei em frente da estante que me preoccupava, assim solitaria, ? maneira d'uma torre n'uma planicie, com o seu alto pharol. Toda uma das suas faces estava repleta de Diccionarios; a outra de Manuaes; a outra de Atlas; a ultima de Guias, e entre elles, abrindo um folio, encontrei o Guia das ruas de Samarkande. Que macissa torre de informa??o! Sobre prateleiras admirei apparelhos que n?o comprehendia:--um composto de laminas de gelatina, onde desmaiavam, meio-chupadas, as linhas d'uma carta, talvez amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o decepar, um cutello funesto; outro avan?ando a bocca d'uma tuba, toda aberta para as vozes do invisivel. Cingidos aos umbraes, liados ?s cimalhas, luziam arames, que fugiam atrav?s do tecto, para o espa?o. Todos mergulhavam em for?as universaes, todos transmittiam for?as universaes. A Natureza convergia disciplinada ao servi?o do meu amigo e entr?ra na sua domesticidade!...

Jacintho atirou uma exclama??o impaciente:

--Oh, estas pennas electricas!... Que secca!

Amarrot?ra com colera a carta come?ada--eu escapei, respirando, para a Bibliotheca. Que magestoso armazem dos productos do Raciocinio e da Imagina??o! Alli jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciaes a uma cultura humana. Logo ? entrada notei, em ouro n'uma lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a regi?o dos Economistas. Avancei--e percorri, espantado, oito metros de Economia Politica. Depois avistei os Philosophos e os seus commentadores, que revestiam toda uma parede, desde as esc?las Pre-socraticas at? ?s esc?las Neo-pessimistas. N'aquellas pranchas se acastellavam mais de dois mil systemas--e que todos se contradiziam. Pelas encaderna??es logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Plat?o, em cima, resplandecia, n'uma pellica pura e alva. Para diante come?avam as Historias Universaes. Mas ahi uma immensa pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante, como fresca terra d'alluvi?o tapando uma riba secular. Contornei essa collina, mergulhei na sec??o das Sciencias Naturaes, peregrinando, n'um assombro crescente, da Orographia para a Paleontologia, e da Morphologia para a Crystallographia. Essa estante rematava junto d'uma janella rasgada sobre os Campos Elyseos. Apartei as cortinas de velludo--e por traz descobri outra portentosa rima de volumes, todos de Historia Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente at? aos ultimos vidros, vedando, nas manh?s mais candidas, o ar e a luz do Senhor.

--...<>

Pulei, com um berro.

--Oh Jacintho, aqui ha um homem! Est? aqui um homem a fallar dentro d'uma caixa!

O meu camarada, habituado aos prodigios, n?o se alvoro?ou:

--? o Conferen?ophone... Exactamente como o Theatrophone; s?mente applicado ?s esc?las e ?s conferencias. Muito commodo!... Que diz o homem, Z? Fernandes?

Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:

--Eu sei! Cubos diabolicos, espa?os magicos, toda a sorte de horrores...

Senti dentro o sorriso superior de Jacintho:

--Ah, ? o coronel Dorchas... Li??es de Metaphysica Positiva sobre a Quarta Dimens?o... Conjecturas, uma massada! Ouve l?, tu hoje jantas commigo e com uns amigos, Z? Fernandes?

--N?o, Jacintho... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!

Eu co?ava a barba:

--N?o, Jacintho, n?o... Eu venho de Gui?es, das serras; preciso entrar em toda esta civilisac?o, lentamente, com cautella, sen?o rebento. Logo na mesma tarde a electricidade, e o conferen?ophone, e os espa?os hypermagicos e o feminista, e o ethereo, e a symbolia devastadora, ? excessivo! Volto ?manh?.

Jacintho dobrava vagarosamente a sua carta, onde mettera sem rebu?o duas violetas brancas tiradas do ramo que lhe floria o peito.

--?manh?, Z? Fernandes, tu vens antes d'almo?o, com as tuas malas dentro d'um fiacre, para te installares no 202, no teu quarto. No Hotel s?o embara?os, priva??es. Aqui tens o telephone, o teatrophone, livros...

Acceitei logo, com simplicidade. E Jacintho, embocando um tubo acustico, murmurou:

--Grillo!

Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu, surdio o seu velho escudeiro , que eu me alegrei de encontrar t?o rijo, mais negro, reluzente e veneravel na sua tesa gravata, no seu collete branco de bot?es de ouro. Elle tambem estimou v?r de novo <>. E, quando soube que eu occuparia o quarto do av? Jacintho, teve um claro sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o sentir emfim reprovido d'uma familia.

--Grillo, dizia Jacintho, esta carta a Madame de Oriol... Escuta! Telephona para casa dos Tr?ves que os espiritistas s? est?o livres no domingo... Escuta! Eu tomo uma douche antes de jantar, tepida, a 17. Fric??o com malva-rosa.

E cahindo pesadamente para cima do divan, com um bocejo arrastado e vago:

--Pois ? verdade, meu Z? Fernandes, aqui estamos, como ha sete annos, n'este velho Paris...

Mas eu n?o me arredava da mesa, no desejo de completar a minha inicia??o:

--Oh Jacintho, para que servem todos estes instrumentosinhos? Houve j? ahi um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... S?o uteis?

Jacintho esbo?ou, com languidez, um gesto que os sublimava.--Providenciaes, meu filho, absolutamente providenciaes, pela simplifica??o que d?o ao trabalho! Assim... E apontou. Este arrancava as pennas velhas; o outro numerava rapidamente as paginas d'um manuscripto; aquell'outro, al?m, raspava emendas... E ainda os havia para collar estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...

--Mas com effeito, accrescentou, ? uma s?cca. Com as molas, com os bicos, ?s vezes magoam, ferem... J? me succedeu inutilisar cartas por as ter sujado com dedadas de sangue. ? uma massada!

Ent?o, como o meu amigo espreit?ra novamente o relogio monumental, n?o lhe quiz retardar a consola??o da douche e da malva-rosa.

--Bem, Jacintho, j? te revi, j? me contentei... Agora at? ?manh?, com as malas.

--Que diabo, Z? Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de jantar. Talvez te tentes!

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