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Read Ebook: Paisagens da China e do Japão by Moraes Wenceslau De
Font size: Background color: Text color: Add to tbrJar First Page Next PageEbook has 267 lines and 45540 words, and 6 pagesRita Farinha PAISAGENS DA CHINA E DO JAP?O WENCESLAU DE MORAES Paisagens da China e do Jap?o LISBOA Typ. de Francisco Luiz Gon?alves 80, Rua do Alecrim, 82 A Camillo Pessanha e Jo?o Vasco Wenceslau de Moraes. AS BORBOLETAS A J. Moreira de S?. A lenda das borboletas. S?o t?o lindas, as borboletas! Quem as v?, que n?o lhes queira? ahi vagabundando pelo azul dos campos, razando as corollas frescas, amando-se, beijando-se, libertas da larva abjecta, como almas de amantes despidas da miseria terreal, a viajarem no infinito... S?o t?o lindas, as borboletas!... Mas na China s?o talvez mais lindas do que todas. ? um deslumbramento surprehendel-as na quieta??o dos bosques, voejando aos pares, que se tocam, que se abra?am, e enfiando pelas sombras mysteriosas dos bambuaes, com as suas longas azas palpitantes, lancioladas, em matizes maravilhosos, de negros avelludados, de azues meigos, de amarellos quentes, como se as loucas vestissem cabaias de setim, de sedas de alto pre?o... Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava, ha longos seculos, uma pacifica aldeia do Yang-tsze-kiang, n?o longe do logar que hoje se diz Shanghae. Como fosse muito dada a estudos litterarios e as escolas do seu sexo n?o lhe satisfizessem a ambi??o, conseguiu que seus paes lhe permittissem o disfar?ar-se em homem, e assim abalou, a ir frequentar a mais famosa universidade do imperio. Volveu ao lar ap?z tres annos; volveu t?o pura como f?ra; da sua innocencia ha provas irrecusaveis. Para n?o divagar muito n'estas paginas, basta dizer a quem me queira ouvir, que um len?o de seda branca, que ella enterrara na lama em presen?a d'uma sua cunhada predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois tirado sem uma s? mancha e sem um s? farp?o, branco, puro, como a alma da donzella; e basta saber que as fl?res da sua preferencia, que ella deix?ra no jardim, rogando aos deuses que as conservassem frescas como ella, assim se conservaram durante a longa ausencia, embora, como consta, a cunhada as fosse regando com agua quente tirada da chaleira. Durante os tres annos de seu estudo, um companheiro, por nome Leun-San-Pac, intimamente se lhe afei?oou. Era o seu camarada inseparavel, o seu irm?o; dormindo juntos, conversando juntos, estudando juntos, divagando, sonhando; e o lorpa do mocinho nunca se apercebeu que tinha a seu lado uma mulher. Quando soou a hora das despedidas, cortava o cora??o v?r o rapaz, lamentando o futuro isolamento, a perda d'um amigo como aquelle. A mo?a consolava-o. A mo?a poisava-lhe nos hombros as suas m?os gentis, e exhortava-o a que se enchesse de coragem, a que se entregasse ao amor do estudo, t? alcan?ar um alto grau de sapiencia.--< A donzella esperou, esperou, esperou,--quem poder? descrever esse tormento? guardando da familia o seu segredo; e o mo?o n?o apparecia. Segundo os usos do paiz, os paes destinaram-lhe um marido; e ella, a desolada, escrava da obediencia filial, obediencia cega, indiscutivel, que ? a base da vida inteira moral do povo china, inclinou-se, acceitou, sem que uma s? queixa proferisse. Tres dias decorridos depois do contracto nupcial, eis que chega ? aldeia o pobre Leun-San-Pac; pobre, porque a desventura se lhe acerca; mas rico de erudi??o, de uma alma culta, e occupando um logar proeminente. Encontra o seu amigo, encontra o seu irm?o; mas agora sem disfarces, na gra?a plena dos seus enlevos femininos, na gentil elegancia das vestes que lhe s?o proprias, e com grinaldas de flores na tran?a negra. De come?o, este enigma, pouco a pouco explicado, confunde-o, desnortea-o; mas tudo se aclara; da amisade ao amor o salto ? rapido. Oh! elle ama-a agora, elle ama-a de todas as for?as do seu ser; e no olhar de fogo transluzem mil mysterios de adora??es e de desejos!... ? tarde. A palavra dada ao feliz noivo n?o se quebra. Os velhos paes prezam mais do que tudo, a propria honra. Elle parte; elle parte para um logar visinho, louco, com a alma embebida no fel dos desesperos. ? ainda ella, a doce pomba obediente, que tenta consolal-o. Ella escreve-lhe; ella diz-lhe que a vida n?o ? eterna; que a piedade filial arrasta-a a um consorcio que s? lhe vaticina dores e prantos; mas que as almas s?o livres, emigram d'uns corpos para outros; encarnam-se n'outros seres; que elle socegue, aguarde outra existencia, para a qual ella lhe jura ser? a sua companheira, toda fidelidade e toda amor. Leun-San-Pac l?, faz um bolo d'essa carta, onde t?o demoradamente poisara a m?o da sua bella, e engole-o, e suffoca-se com elle, e exhala assim na solid?o o ultimo suspiro. Um pouco al?m, sobre a montanha, se lhe elevou a sepultura. Soam bategas festivas, estalejam nos ares fogos de gala, de alegria; e pela longa estrada em ziguezague, bordada aqui e alli de bambus e bananeiras, doirada pelo sol do meio dia, serpea em rutilantes theorias o monumental cortejo do noivado, caminho do lar feliz. O estylo de ha mil annos ? o mesmo estylo de hoje. S?o os grandes bal?es, os estandartes, conduzidos por mo?os vestidos de vermelho. S?o os enxovaes primorosos, as cabaias, a collec??o dos sapatinhos, tudo disposto nas liteiras luzentes dos esmaltes. S?o as colossaes pe?as de do?aria, castellos de assucar, drag?es de assucar, coisas espantosas. S?o os porcos assados, loiros, deliciosos, espalmados sobre os taboleiros, com la?os de fita nos focinhos. S?o as orchestras estridentes, de flautas, de rebecas. S?o as crean?as ataviadas em setins, em allegorias de scenas de outros tempos, cavalgando alimarias pachorrentas. ? finalmente a liteira da noiva, toda ella oiros, toda ella esmaltes, fechada como um cofre, furtando ? vista dos curiosos o precioso fardo, Choc-In-Toi. A noiva solicita do cortejo um curto desvio na sua marcha. A noiva, antes de entrar no lar e de ser esposa e escrava, quer abeirar-se, al?m, d'aquella sepultura esquecida na montanha, e orar junto dos restos do que morreu por ella. Quem lhe recusaria tal licen?a? Eil-a que desce da liteira, nas suas cabaias deslumbrantes; e eil-a que se prostra, eil-a que beija a terra... A terra abre-se ent?o, carinhosa, m?e; a terra traga-a, chama-a a si, chama-a para junto dos ossos do seu querido. A comitiva pasma do milagre. As m?os avan?am a detel-a; mas s? logram colher um peda?o do vestido, que se rasga, e ? tudo... O peda?o de seda, de mil matizes, transforma-se de subito n'uma borboleta de mil c?res, que v?a das m?os rudes, e desapparece no azul, desapparece!... ? desde aquella epocha que ha borboletas n'este mundo, t?o lindas, t?o cheias de matizes!... Eu n?o lhes estou contando uma mentira, meus amigos. Ainda hoje se v? a sepultura, esboroada pelos seculos, d'aquelles amorosos. E as esposas desprezadas alem v?o em romaria, e d'aquella terra bemdita se suprem ?s m?os cheias, e d'ella provam, e disfar?ada com o arroz a ministram aos maridos. Consta que o estranho tempero, aquella terra, que em alguma coisa participa da essencia dos amantes que ali jazem para sempre, tem virtude comsigo, e ? sempre efficaz em trazer ao bom caminho os mariolas, os maridos. A ALFORRECA A Henrique Carvalhosa. Falla a lenda japoneza. O rei dos drag?es n?o queria passar, entre damas por um drag?o cruel; por demais conhecia elle os caprichos pueris do sexo fragil, mas perdoava-os complacentemente, por systema; e sobretudo adorava a esposa, cujas lagrimas desejaria poupar a todo o transe. Satisfa?a-se pois o capricho da rainha. Mandou chamar a sua escrava mais fiel e dedicada, a alforreca, e disse-lhe o seguinte:--< L? vae, oceano f?ra, vento em p?pa, a alforreca, emissaria obediente e ufanosa do encargo. Por aquelles tempos, a alforreca, como qualquer bicho das aguas, era um animal gracioso, de contornos esbeltos, com cabecinha, com olhinhos, com m?osinhas, e com a competente cauda titillante; e ficava-lhe t?o bem o fato de marujo!... L? vae, oceano f?ra, olhar sereno e cogitador, rompendo a vigorosas bra?adas a onda fria. N?o tarda muito a abeirar-se do paiz onde vivem os macacos; por felicidade, um alem est?, um lindo mono, saltando de ramo em ramo, dependurando-se das arvores que enraizam nos penedos e se debru?am sobre o mar.--< N?o p?z objec??es a nadadora. Voltando ? terra, o macaco saltou ao castanheiro com uma ligeireza nunca vista, nem mesmo entre macacos, acompanhando o pulo d'uma alegre careta e d'um gesto que traduzia o jubilo do bestunto, coisa que passou estranha ? alforreca. Procurou entre as folhas o seu figado. N?o o encontrou. Explicou ent?o do alto, ? alforreca, que provavelmente algum companheiro o lev?ra para longe, o que o obrigava a mais demoradas pesquisas pelo bosque; no entretanto que f?sse ella contar o caso ao seu senhor, que devia estar ancioso por v?l-a chegar antes da noite. Assim procedeu o bicho. Com respeito ? soberana, reconsiderando no disparate do seu capricho, concluiu que o melhor que tinha a fazer era erguer-se da cama e p?r-se b?a; e assim fez, com grande pasmo dos doutores. A historia da alforreca est? contada, na sua simplicidade commovente. ? veridica esta historia, como tudo que o povo relata de memoria; creia n'ella quem cr?. Fica-se j? sabendo no entretanto,--e ? isto d'um proveitoso ensinamento,--que os japonezes t?o prodigamente propensos ao perd?o para tantos pecadilhos de alma e de costumes, castigam os patetas. Diga-se francamente: esta desgra?a da alforreca, no paiz do sol nascente, era inevitavel; e o caso presta-se a interessantes commentarios, que eu vou resumir em poucas linhas. Os japonezes--povo de artistas--s?o os grandes amorosos da crea??o, da forma, da vida; ninguem como elles conhece os segredos da ave, do insecto, do reptil, do peixe, dos molluscos, do verme, de todos os seres da terra; a animalidade graciosa d'esses seres, estudada com percep??es especiaes, que nos escapam, constitue o thema mil e mil vezes variado, dos seus primores de arte. Mas esse monstro, essa disformidade, essa alforreca que se apresenta como unica excep??o da lei geral da gentileza da vida, e parece resumir em si o enfado inteiro d'um dia de mau humor do Omnipotente, devia ter deixado impress?es tristes nos primeiros japonezes que a avistaram; e foi preciso arranjar logo uma explica??o condigna do phenomeno, e ? a que ficou descripta n'estas linhas. ? ainda interessante recordar de passagem a approxima??o, pela desdita, da alforreca japoneza com a medusa mythologica da Grecia, n?o merecendo esta melhor tratamento dos deuses olympicos. Curiosa coincidencia! O ANNO NOVO A Feliciano do Rozario. Temos festa hoje, aqui. A alma chineza manifesta-se, evidencea-se, domina, hoje; offusca, pela grande maioria dos rabichos, o pallido reflexo da civilisa??o do Occidente que logrou chegar a este Macau, a este exiguo penedo asiatico, onde Portugal implantou a sua bandeira. Meia noite. Ao meu obscuro albergue, chega, de alem dos bazares, o ruido da bombardada amotinadora dos foguetes, e das mil e mil embarca??es fundeadas no porto o clamor ovante das bategas, vibradas pelas m?os rudes das companhas. Que ir? l? por esses bazares, a estas horas, santo Deus!... Eu n?o me arredo do meu canto. Bem sei que a febre das massas suggestiona, contamina todos. Bem sei que n?o se dorme hoje; que n?o ha chap?o de c?co de amanuense ou kepi de militar, direi mesmo chapelinho de pellucia com la?arotes de setim e seu competente passaro empalhado, de menina, que n?o v? correr as viellas, perder-se na onda, confundir-se com os rabichos, gosar com elles. Mas est? tanto frio, e as bagas de agua zurzem-me t?o desapiedadamente os vidros das janellas... E, peor do que isto, ? o frio da alma, ? a apathia enervante do meu espirito, ? o sorriso amargo que me enruga os labios, provocado por esse mesmo jubilo do enxame, que aqui me ret?em e me impedem de tambem ir galhofar. N?o, decididamente n?o serei da festa. Imagino-a d'aqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de povo sujo, com as cabaias negras ensopadas dos chuvascos; e imagino os lumes tremeluzentes das lanternas de papel, accendendo nas po?as, pelo reflexo... grandes labaredas ephemeras, ziguezagueando. As lojas est?o escancaradas ao publico; fructos, fl?res, doces, carni?as, bonecos, coisas santas, estendem-se pelos caminhos em prodigiosas theorias, em coloridos quasi estonteantes; e ? comprar, e comprar j?, porque n?o tarda em romper o glorioso dia de descan?o, o unico na China em que o camponez, o artifice, o vendilh?o, todos, cruzam os bra?os, n?o trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um linguado, uma caixa de phosphoros, qualquer infimo objecto nos mercados. As espeluncas de jogo, em galas desusadas, offerecem-se, tentam a onda; e at? pelas ruas o taboleiro de azar se estende ao passeante. Que pechincha, se se apanha para a festa um accrescimo de peculio n?o esperado! O china adora o jogo--era preciso que elle adorasse alguma coisa!--mas hoje todos jogam, todos s?o chinas, e ? isto um exemplo interessante da influencia suggestiva das grandes maiorias; a m?o mais circumspecta de funccionario, a m?o mais mimosa de dama avan?am sem pejo, arriscam ? sorte varia umas pratinhas... Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas adora??es milhares de cabe?as agradecidas, e se queimaram papeis mysticos, e se accenderam pivetes odorificos; quando em plena rua um brado de alleluia os echos acordou; dirige-se ent?o a onda humana para o lar, j? mercas feitas, j? bolsas esvasiadas; e vae surgir um grande dia votado inteiro ao descan?o, votado ? glorifica??o dos deuses, cuja magnanima assistencia se exalta pelas gra?as concedidas e pelas gra?as que v?o esperar-se!.... Mesquinha humanidade! como tu me entristeces, ? pobre humanidade, ? pobre familia minha, ainda mais nos teus regosijos e nas tuas esperan?as, do que nos teus choros e nos teus desenganos!... Para este bando chinez com quem me encontro agora, que explos?o de ben??os lhe estimula a sentimentalidade? que altos beneficios commemora? O bando aben?oa a sua eterna existencia de miseria, a miseria passada, a presente e a que fatalmente vae seguir-se-lhe. Aben?oa a labuta sem treguas, em busca do punhado de arroz de cada dia; ora exercida no lar immundo, sem sombra de conforto; ora exercida pelos campos, nas varzeas, nas collinas, no amanho da terra, sob a oppress?o constante dos raios do sol que escalda, ou dos frios que paralysam; ora exercida nos barcos, que se cruzam na podrid?o dos estuarios, ou pairam sobre a onda adormecida durante as calmas torpidas, ou se desfazem no escarceo, quando os tuf?es rugem em furia. O bando aben??a a fatalidade da sua condi??o social, o problema espantoso, paradoxal, do seu feitio de ser, que em todas as deprava??es, em todas as iniquidades imaginaveis, parece ir buscar as leis unicas por que se rege. O bando aben??a ainda as calamidades tremendas, que n'estes ultimos tempos, como uma maldi??o divina, teem pairado sobre a immensa patria:--nas provincias do sul, nos seus centros mais populosos, ? a peste, a peste negra, roubando em cada lar um ou dois filhos, ou o pae, ou a m?e, ou mesmo todos juntos, e vestindo de lucto, de tristes roupas alvas, os parentes, e amea?ando estabelecer-se definitivamente, enraizar como uma arvore de pe?onha, d'onde emanar? a cada instante o veneno subtil, destruidor das turbas; e, para cumulo de infortunio e de descredito, um visinho, um povo irm?o, o povo japonez, invade, vence e desbarata a China, morde e come peda?os do seu torr?o sagrado, envergonha-a, offerece-a ao escarneo do mundo na miserrima condi??o da sua plebe e na opulenta infamia dos seus nobres, desprestigiada emfim, indefeza ? cubi?a das gentes, aos homens loiros da Europa, que n?o tardar?o em vir espezinhal-a.--Embora! esque?am-se hoje as miserias, vista-se o povo em gala, chovam ben??os sobre o anno que come?a. E amanh?, decorridas algumas horas de folgan?a, recomecem, prosigam,--pouco importa!--os turvos dias de amargura, a fatalidade da existencia no antro, a dura labuta no campo e no barco, a faina eterna, a orgia torpe dos maridos, a escravid?o das esposas, a venda das filhas a quem mais der, os horrores da prostitui??o, as vergastadas nas creadinhas, as extor??es dos mandarins, as torturas nos carceres, a morte lenta nos patibulos, a obra de destrui??o das epidemias e do opio, as humilha??es perante o vencedor, as exigencias do Occidente, as arrogancias dos homens loiros... Para o anno novo, tudo se prepara com antecedencia, em prodigiosa azafama; ? para todos uma occupa??o incessante e desusada, durante as ultimas semanas do anno que vae findar. Lavam-se os covis, lavam-se as podres mobilias. ? o p? d'um anno que se sacode, ? a lama d'um anno que se deita f?ra, ? o piolho e ? a pulga d'um anno que se afogam na onda das barrelas; porque, durante os labores de cada dia, nunca a id?a de limpeza preoccupou os espiritos durante um s? instante. Tudo ? providencial neste mundo, ao que parece. Na chafurda typica d'estas povoa??es chinezas, t?o frequentemente visitadas por todas as pragas--cholera, peste, lepra,--embebidas no lodo dos canaes, no ambiente das emana??es dos estrumes pachorrentamente acogulados e dos despejos que apodrecem pelas ruas, custa a cr?r como a gentalha pollula, e como os consorcios fructificam em ninhadas de garotos; e parece ? gente que um sopro qualquer destruidor, de calamidade immensa, ir? em breve prostrar esses enxames, sem que deixe de p? um s? vivente nos albergues. Puro engano: as povoa??es eternizam-se. No parecer de alguns investigadores, que taes exotismos interessam, se os miasmas putridos convidam as epidemias a entrar e a vindimar providencialmente as muitas vidas que superabundam, estes mesmos miasmas, sobrecarregados de vapores de ammoniaco, de exhala??es corrosivas de fermentos, se encarregam de ferir tambem mortalmente os virus morbidos, poupando o resto do povo. Chegamos ao facecioso paradoxo de ser na China a immundicie o purificador por excellencia, um como que elixir de longa vida, indispensavel a todas as familias, feito da mais estupenda alchimia de dejectos. Conceda-se pois, por excep??o, a este bom povo celestial, o capricho de lavar uma vez cada anno o antro onde se abriga. Depois, ? ver a faina de collar pelas paredes, pelas portas, pelas janellas, papeis de bella c?r escarlate, com negras inscrip??es cabalisticas, que s?o votos de ventura e de riqueza, que s?o preces aos deuses. E chega a occasi?o de se adornarem os altares, de se irem comprar junquilhos em flor, que se disp?em em vasos gentis com agua e seixos alvos, e assim v?o enfeitar os aposentos, levando o vi?o e o perfume, por um dia, aos negrumes das alcovas. No meio do complicado rito das usan?as, algumas praticas enternecedoras, de ingenuidade primitiva, interessam o curioso. Reparem por exemplo nas enormes celhas expostas pelos mercados, onde enxames de pequeninos peixes negros, carpas barbudas, estrebucham na gotta de agua do improvisado captiveiro; o povo compra-as, e vae lan?al-as em seguida nas ribeiras, gosando na ac??o do resgate, por certo grata aos deuses, e que redundar? em beneficios... A PRIMAVERA A Camillo Pessanha Ha alguns dias, na cidade de Kobe,--poderia precisar o dia, e quasi a hora, se tamanho rigorismo me exigissem,--irrompeu a Primavera. Irrompeu: n?o ha sombra de exagero no vocabulo. Irrompeu, surgiu d'um pulo, fez explos?o. N'este paiz do Sol Nascente, onde o sol, e com elle todas as grandes for?as naturaes, s?o ainda uns selvagens--se assim posso expressar-me--uns selvagens sem freio, sem no??o das conveniencias, incapazes de se apresentarem de visita, de luvas e casaca, n'uma c?rte qualquer da nossa Europa; n'este paiz do Sol Nascente, ia eu dizendo, a crea??o inteira apostou, parece, em offerecer em cada dia uma surpresa, toda ella exuberancias inauditas, espalhafatos unicos, repentismos nervosos, caprichos doidos, como se reunisse em si a quinta essencia da alma das crean?as e a quinta essencia da alma das mulheres, a gargalhada, a tro?a, emfim, motejadora de tudo quanto ? ordem, harmonia, contemporisadora lei das transi??es. Hontem, foi um inverno duro, gelido, vestido apenas d'uma ampla tunica de neve. Hoje, d'um salto, o sol rompeu em quenturas amorosas, come?aram de florir as arvores, e evolaram-se os insectos. Amanh?, ser? o estio torrido, em brazas, como nem na China, nem na Africa se sente. E assim corre o tempo, v?am as horas; cada instante ? um meteoro; e aqui um tuf?o arranca os troncos, e alli a chuva torrencial inunda as varzeas, e alem um rio transborda do seu leito, e uma onda do largo afoga as aldeias, e uma convuls?o subterranea abala o solo... O europeu, o pobre europeu das paizagens serenas, soffre os choques d'esta natureza, por demais subversiva para o seu espirito triste, meditativo e attribulado. Offerece-se-lhe um de dois caminhos a seguir: ou communga na vida japoneza, inicia-se nos seus segredos intimos, ama-a nas suas modalidades, e assim a existencia se lhe gasta, se consome rapida, esgazeada em admira??es, doidejando em vertigens; ou se retrae, se isola, odeia a natureza que n?o comprehende, odeia o exilio, vive de saudades da patria, entre as quatro paredes do seu lar, ou dos clubs cosmopolitas da colonia forasteira. N?o ? preciso mais para justificar o tique de loucura, facilmente perceptivel, da enorme maioria d'estes expatriados, homens e mulheres, ap?s curta residencia no paiz japonez. Ora pois,--dada esta concisa explica??o ? gente incredula,--ha alguns dias, na cidade de Kobe, irrompeu a Primavera. Pela noite velha, f?ra chegando uma brisa como que amorosa, acariciadora, perfumada. No silencio das trevas, as carpas acordaram, n'um charco fronteiro ao meu albergue; e estrabuchavam, e produziam desusados ruidos, saltando fora d'agua, ardendo em cios, endemoninhadas. Quando rompeu o dia, e appareceu o sol, n?o se descreve o enlevo do bafo morno, embalsamado, genesiaco, que enchia o espa?o. O ceu tinha azues novos; cirros de paz pairavam nas alturas. A paizagem esverde?ra; esverde?ra da herva nova, que surgia, e das arvores velhas, que se coloriam. A nossa observa??o educa-se n'este meio em especialidades de minucia, abundando por toda a parte, em campos e jardins, as coniferas, de todas as f?rmas, de todas as grandezas; estas arvores nunca se desfolham, mas no inverno descoloram-se, empallidecem como mulheres chloroticas, chegam a lembrar enfermos, chegam a lembrar coisas mortas; depois, a primavera excita-lhes a seiva, um verde intenso assoma-lhes ?s folhas, a vida recome?a, doida, v?o desabrochar flores em f?ria!... Add to tbrJar First Page Next Page |
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