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Munafa ebook

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Read Ebook: Paisagens da China e do Japão by Moraes Wenceslau De

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Ebook has 267 lines and 45540 words, and 6 pages

Pela noite velha, f?ra chegando uma brisa como que amorosa, acariciadora, perfumada. No silencio das trevas, as carpas acordaram, n'um charco fronteiro ao meu albergue; e estrabuchavam, e produziam desusados ruidos, saltando fora d'agua, ardendo em cios, endemoninhadas. Quando rompeu o dia, e appareceu o sol, n?o se descreve o enlevo do bafo morno, embalsamado, genesiaco, que enchia o espa?o. O ceu tinha azues novos; cirros de paz pairavam nas alturas. A paizagem esverde?ra; esverde?ra da herva nova, que surgia, e das arvores velhas, que se coloriam. A nossa observa??o educa-se n'este meio em especialidades de minucia, abundando por toda a parte, em campos e jardins, as coniferas, de todas as f?rmas, de todas as grandezas; estas arvores nunca se desfolham, mas no inverno descoloram-se, empallidecem como mulheres chloroticas, chegam a lembrar enfermos, chegam a lembrar coisas mortas; depois, a primavera excita-lhes a seiva, um verde intenso assoma-lhes ?s folhas, a vida recome?a, doida, v?o desabrochar flores em f?ria!...

S?o estas florescencias paradoxaes, t?o caracteristicas do solo nipponico, que encaminham a cada momento o pincel indigena para requintes de matizes que a esthetica occidental n?o comprehende; ellas que inspiram aos artistas esses t?o frequentes fundos de paizagem salpicados de brancos e vermelhos, a reminiscencia do instante em que as flores se desfolharam e cairam do alto, n'um chuveiro de petalas.

De parceria com as arvores, s?o as hervas, as plantas, os arbustos, que se vestem de folhas e se enfeitam de flores. J? ao longo dos muros espreitam, por entre as pedras, as violetas silvestres; e o solo vae vicejar de musgos, fetos, de relvas, de bambus e de humildes gramineas; e matizar-se de brancos, de azues, de amarellos, de escarlates, de roxos, de mil c?res, de mil flores sem nome, apenas conhecidas dos insectos, que s?o botanicos emeritos e sabem de c?r e salteado onde as corollas lhes offerecem os manjares mais capitosos. J? desabrocham os junquilhos, as camelias. V?o desabrochar a wistaria, as azaleas, os lirios, os iris, os narcisos, os convolvulos, as peonias, a legi?o vegetal.

Mas que tristeza immensa!... Como eu amaldi?oava, n'aquella hora, estas inven??es da epocha, estes engenhos surprehendentes, monstruosos, que vem zombar da vida, e assassinar arte, enlevos fugaces que passam, reminiscencias, saudades, tudo o que ? doce ao espirito... porque,--affirmo-o tanto quanto as palavras me podem traduzir o pensamento,--porque, no fim de contas, ficou-me uma desconsoladora no??o de desprestigio da existencia, e de tro?a ?s leis do mundo, ? lei da success?o dos factos no tempo; e vi em pensamento um bando de velhinhos alchimistas largarem as retortas, por um momento, e virem bradar ? crea??o, fitando o ceu ?s gargalhadas:--<>--J? n?o bastava a photographia, esta artimanha irreverente, que vae implicar com os ausentes, com os defuntos, com o mundo distante, dando-nos em troca da sentida recorda??o, que guardavamos, o phantasma, em contornos, do que fugiu dos nossos olhos. Agora ? o graphophone, que eterniza os sons, a voz dos de longe, a voz dos que morreram. Morte, ausencia, j? n?o tem raz?o de existir nos diccionarios. Para o caso a que me refiro, c? continua o americano imbirrante a vomitar os seus discursos, os musicos a tocarem, os cantores a cantarem, o publico a rir, a chorar, a applaudir, a chala?ar. Passaram-se assim as scenas ha dois annos, ha cinco annos, ha dez annos. Estar? a estas horas o americano morto, coisa de alguma bebedeira mais forte, que o prostou? a crean?a, que chorava, dormir? tambem n'um tumulo, coitadita? a dama, que ria, estar? doida, n'um asylo? o homem, que applaudia, n'um carcere, cumprindo uma senten?a? Nada importa. A machina chama-os, reune-os, ressuscita-os, renova-os para a pandiga d'um momento da existencia; o passado ? presente; e a machina agita-os, empurra-os para o interior das nossas casas, para nos divertirmos ? custa d'elles mesmos...

Primavera? ia eu pensando com os meus bot?es. Primavera? ri a natureza? florescem as arvores? cantam amores os passaros? ? uma realidade? Ah! talvez n?o, que hoje, a um phenomeno substitue-se quasi sempre uma industria; e espectaculos do Pae do Ceu f?ram j? quasi todos supprimidos, porque iam aborrecendo a humanidade... Cada dia que passa, regista cem descobertas, tendente cada qual a apagar do nosso espirito a lenda do mysterio, do incomprehensivel. A vida, o mundo reduzem-se a machinas, a engenhos mais ou menos complicados. Doce Primavera, que me enfeiti?a? Tro?a. Aqui anda machina, apost?ra! Quem me assegura, que isto n?o foi primavera servida a meus av?s ha mais de um seculo, gravada n'um cylindro, e impingida depois como nova, de quando em quando, aos patetas, que a applaudem?...

E a proposito da Primavera que irrompia, duas palavras sobre outra Primavera, que morria, ahi pela mesma epocha.

NILGUYO

As alegrias d'elle consistiam principalmente em entregar-se ? pesca, pesca ? linha durante os longos ocios; tristezas, sentia-as sobretudo, mais mordentes, ao recolher ? noite a casa, derreado, cambaleando de somno e de fadiga, sem encontrar uma alma companheira que lhe sorrisse ? porta, e em sauda??es o convidasse a entrar, nem m?os prestimosas que lhe tomassem do peixe e o amanhassem, e fossem depois leval-o ao fogo do brazeiro. Em toda a parte, e especialmente no Jap?o, estes sentimentos intimos d'alma,--jubilos de pescador ? linha e desalentos de solteiro,--s?o bem justificaveis. Com effeito, para um temperamento vagabundo e impressionavel aos enlevos da paizagem, como se d? com todo o japonez, quantos encantos n?o v?o proporcionando a linha e o anzol, induzindo-nos sem esfor?o a longos passeios de bohemio, penedos e praias f?ra, contornando margens ziguezagueantes de ribeiras e enseadas, em face dos scenarios serenos, todos verde, frescuras, espelhos de aguas e murmurios... e como as horas v?am, acocorado o corpo sobre a rocha, a m?o ora affeita, ora prendendo o isco, ora demorando-se em commovente espectactiva, ora colhendo o peixe a estrebuchar; e o espirito voando, como as horas, alheio ao officio, deliciando-se em sonhos, viajando no reino das chimeras... Mas ? noite, ap?s um dia inteiro de labuta, ? que o corpo se doe e falham os joelhos; e deve ent?o saber t?o bem chegar a gente ao lar de esteiras e papel, e vir ? entrada ajoelhar-se em cortezias a figura gentil d'uma esposinha fresca, envolvida em sedas e perfumes, com as m?ositas rosadas em posi??o submissa, as m?ositas t?o habeis em c?rarem nas brazas as trutas saborosas...

Ora, um bello dia, o nosso homem, de quem a tradi??o n?o tomou conta do nome, achava-se pescando segundo o seu costume, bambu em punho, e meditando ao mesmo tempo sobre o seu desconsolo e desolada sorte, quando... zaz! um grande safan?o na linha lhe fez logo imaginar que alguma coisa f?ra do commum viera de colher. Por pouco se lhe n?o v?o, linha, e anzol, e peixe ao mesmo tempo; ent?o, com muitas manhas que s?o proprias da arte, poz-se a can?ar a presa, j? alongando o bra?o e deixando-a debater-se a seu capricho, j? aproveitando o repoiso para traze-la ? praia; at? que emfim, azado o instante, puxou com for?a, e veio cair-lhe o peixe aos p?s.

O nosso pescador voltou ? sua faina. Consta que, n'aquelle dia memoravel, o cabaz se lhe encheu de uma espantosa quantidade de tudo que o mar d?. ? tarde, tornando a casa ajoujado com a carga, bailava-lhe nos labios um sorriso, que provinha da boa pesca que fizera, e tambem da boa ac??o que praticara.

O que ? certo, ? que nunca o pobre solteir?o se lambera com t?o deliciosas petisqueiras. Comeu a sua dose, repetiu, pediu terceira vez; e dizia, a chuchar ainda as cabe?as dos ruivos, que a pena que lhe ficava, era de n?o lhe ser servida uma ceia egual, todas as noites. A companheira observou ent?o modestamente, a meias fallas, que lhe parecia n?o ir al?m dos seus poderes, um tal desejo; e instada a explicar melhor a sua phrase, accrescentou que era solteira, sem parentes, sem lar... Comprehendida finalmente, o remate de t?o feliz encontro foi ella consentir em ser a esposa do sujeito.

Casaram. Bodas de estrondo; e viveram ditosos durante longos mezes. O peixe, o prato querido dos nipponicos, foi s?mpre excellentemente preparado pela esposa, activa, intelligente, a rir-se sempre. O pargo, em fatias cruas regadas com molhos excitantes, era divino! As enguias com arroz, uma delicia! O caldinho de ameijoas, superfino! As trutas assadas sobre o lume, sem egual! E at? uma certa caldeirada, assim como quem diz ? moda do Algarve, era de estalo, sem favor! E o marido tornava-se anafado e luzidio, a testemunhar a toda a gente, pelo volume e pelas banhas, que alguem olhava por elle com disvelo...

Mas o banho? Melhor f?ra n?o fallarmos n'elle...

Ai que pandega que era esse tal banho!... Ella passava a manh? inteira preparando-o, afinando o appetite, podia-se dizer; e no banho se quedava horas esquecidas, pela tarde. Depois, ajoelhada sobre a esteira, espelhinho em frente, e em torno os cofresinhos mysteriosos, era a interminavel tarefa de fazer-se bella, ora branqueando as faces, ora avermelhando os labios, ora compondo o penteado. O esposo cheg?ra mesmo a esta conclus?o n?o muito lisongeira:--que a companheira mais queria ? agua salgada do que a elle;--mas perdoava-lhe,--outros ha que bem menos innocentes caprichos v?o perdoando...--e nunca a sombra sequer d'um arrependimento viera turvar a paz do seu viver.

Uma bella tarde,--tarde de banho por signal--chegou o homem a casa, e, como se diz em portuguez... cheio de fome.--<> A esposa, ? claro, achava-se invisivel, e com a portinha fechada a sete chaves; mas casas japonezas s?o casas de papel, e uma fenda, um rasg?o, convida-nos a enfiar os olhos para dentro. O caso ? que elle espreitou. Surpresa! Horror!... N?o ? uma mulher, mas uma sereia, que se banhava, melhor dizendo--que nadava, em demoradas circumvolu??es de regalo ao longo da tina, agitando mansamente o rabo e as barbatanas, e cantarolando baixinho can??es do mar, can??es das praias...

Pobre marido!--<>

Pobre marido!... Por um acto inpensado, perdeu para sempre uma companheira carinhosa; e, como das nupcias com a sereia lhe resultava o dom de longa vida, foi longa a sua viuvez, e longo o seu martyrio...

O CAVALLO BRANCO DE NANKO

A Carlos Campos

Isto aconteceu ha cerca de mil annos, em terras japonezas: um cavallo, que o grande artista Kanaoka desenh?ra n'um biombo do templo de Ninnadji, perto de Kioto, era uma t?o bella crea??o, cheia de verdade e palpitante de vida, que todas as noites se escapava do papel para ir galopar pelos campos em roda, culturas f?ra, devastando a esmo as sementeiras; e o caso dava-se, claramente, com magno espanto e raiva dos camponios, que o perseguiam ? pedrada. Estes camponios, impressionados pelas f?rmas incomparaveis do animal, persuadiram-se por fim de que elle n?o podia ser outro sen?o o cavallo de Kanaoka; e a persua??o converteu-se um dia em certeza absoluta, quando viram na pintura as patas do travesso, humidas ainda da lama fresca dos caminhos. Sem mais cerimonias, arremetteram contra a tela e esfuracaram-lhe os olhos; e consta que nunca mais houve queixas de estragos nas fazendas.

Ainda outro cavallo de Kanaoka, que era mestre no genero, cavallo desenhado n'uma parede interior do palacio imperial, tinha o vezo de ir devorar pelos jardins as flores tenras do a?afr?o; e s? cessou a brincadeira quando alguem se lembrou de retocar a obra, amarrando o patife ? parede com um peda?o de corda pintada para o effeito.

Ora bem. De muitas maravilhas ? sem duvida capaz a m?o inspirada d'um artista!... Esses dois cavallos de Kanaoka, nascidos d'uma gotta de tinta e de algumas curvas humoristicas de pincel, mas em todo o caso ungidos do sopro sublime do eximio mestre, animavam-se por momentos, soltavam-se da tela, e ahi iam elles!... Felizes bohemios eram e felizes tempos eram. Arte creadora, arte radiosa das epochas passadas, porque n?o vaes tu regendo, ainda e sempre, os destinos de todas as coisas d'este mundo?...

N'estes dias que correm, deslavados e tristes, mesmo no Jap?o, e n?o cessando de divagar no mesmo assumpto de cavallos, confesso francamente a quem me l?r, que nada me mortifica tanto como o espectaculo dos cavallos sagrados dos templos shintoistas. Ora aqui est?o umas cavalgaduras bem authenticas, bem vivas, bem reaes, de carne e osso; e que, se fossem lidas em coisas de arte antiga nacional--mas n?o s?o,--por certo muito invejariam as simples crea??es no papel da m?o de Kanaoka. N'este paiz japonez, onde parece que os seres, homens e bichos, nasceram e vivem n'um banho perenne de sorrisos, mais desoladora se afigura ainda a condi??o dos pobres brutos, que um dia inspiraram estas linhas melancholicas que escrevo.

Eu conhe?o uns poucos d'esses brutos, mas tenho mais intimas rela??es com o de Nanko, um templo aqui em Kobe, celebre, dedicado ? memoria de Kusunoki Masashige, que foi um nobre guerreiro e patriota.

No amplo santuario do templo estabeleceu-se uma feira permanente, dia e noite, mas principalmente de noite, atractiva e frequentada por passeantes e devotos. A vida inteira japoneza passa, perpassa aqui; quem j? folheou os albuns de desenho de Hokusai, e n'elles se interessou, deve depois votar horas inteiras a esta historia viva e flagrante do povo de Nippon; e assim completar, quanto possivel, a no??o que haja formado d'este povo, um dos mais interessantes, e o mais sympathico talvez, do mundo inteiro.

O formigueiro humano ondula, alastra se, sem designio, ? aventura. As sociedades occidentaes nada nos offerecem de parecido. Isto, aqui, ? a multid?o, sem pressas, sem gritos, sem exasperos, tal como nol a apresentam todas as grandes tribus do Oriente; ? o cardume de gente, retida na pra?a publica como o sarga?o em mares tranquillos; aqui, quadro requintadamente gentil e sorridente, inconfundivel, mas que ainda nos recorda as agglomera??es da plebe nos templos de Cant?o ou nos bazares de Aden, ou do Cairo; e, subindo nos tempos e retrogradando em espirito vinte seculos, quasi nos desdobra aspectos vividos, embora fugidios, da Jerusalem biblica, nos seus magotes de homens vestidos de tunicas rojantes, vagueando, palestrando de manso, alongando os bra?os n?s em gestos calmos e solemnes.

No entretanto, a um canto, no estabulo garrido, boceja o cavallo branco sagrado de Kusunoki Masashige. Por velha sympathia, procuro-o sempre, e passo quasi horas inteiras, a v?l-o, a namoral-o. Quantos annos ter? de sacerdocio? Dez annos? Quinze annos?... N?o lhe despertam zanga nem prazer as minhas visitas repetidas. Cabe?a baixa, o olho azul morti?o, parece nada querer, nada sentir, nada soffrer e nada desejar. ? quasi de papel?o, ? for?a de insipidez, o garranito. Ao burburinho, ? luz, ?s c?res, ?s musicas distantes, ? insensivel. Ao bello verde do arvoredo ? insensivel; pelos modos, n?o se recorda j? das paizagens por onde espinoteou... O seu olho azul-celeste, vitreo, provavelmente myope, relancea com a mesma apathica frieza, as mil scenas do acaso; ? gente que o encara,--ral? da pra?a publica, garotos, cavalheiros, acaso um general, acaso um conde, acaso um inglez de nobres pergaminhos,--vota a mesma indifferen?a irreverente que ?s moscas importunas que poisam, por enxames, sem que o commovam, na mucosa descorada da sua pobre focinheira. S? uma vez, presumo, o vi enternecido: relinchava uma egua algures, longe sem duvida; levemente se lhe agitaram as orelhas, como se uma vaga reminiscencia, penso eu, pelo bestunto lhe corr?ra; e pareceu-me ent?o v?r o seu olho azul-celeste arrazar-se de lagrimas, pareceu-me... ?s vezes, avan?a de bom grado a lingua, a ir lamber as m?os das raparigas; por capricho talvez, e por habito, porque s?o aquellas m?os que costumam offerecer-lhe, como obulo piedoso, os feij?es cosidos comprados ? velhita que por ali anda, proximo do estabulo...

Eis todo o seu romance.

A PRIMEIRA FORMIGA

A Sebasti?o Garcez.

? parte esta dedicatoria especial, ? ?s formigas e aos sabios--Deus n?o permitta que ellas, ou que elles, tomem a mal o parallelo--que eu offere?o as revela??es que v?o seguir-se, nas quaes se explica, ap?s longos preambulos, como ? que a primeira formiga veiu ao mundo.

Quando na China, pela era do imperador Tai-Sun, as terras andavam divididas pelas m?os de muitos monarchas irrequietos, envolvidos em continuas batalhas e baralhas, deu-se um caso no ceu, digno de particular ensinamento. Acontecia que uma certa deusa do Olympo--Lei-San era o seu nome--nunca ia dar o seu sem se esmerar em demorados arrebiques, em meticulosas pinturas de cutis, das sobrancelhas e dos labios. Pieguices do sexo, desculpaveis, e at? de certo modo meritorias; mas o caso motivou, certo dia, um risinho malicioso da sua serva mais querida, e ainda por cima este commento pouco respeitoso:--<>--V?o l? chasquear impunemente dos encantos d'uma dama! e quando ella f?r divina... ? certo que t?o cheia de cholera ficou a divindade, que vestiu a deliquente d'uma pelle diabo que encontrou a geito, pelle horrivel, cara azul, ruiva a guedelha, dois dentes curvos surdindo da bocca para f?ra, e m?os e p?s disformes; e assim, n'esse bonito estado, a escorra?ou do ceu, aos belisc?es, e a enviou ao mundo em expia??o. Chamava-se Tchong-Mou-In, a penitente.

Tai-Sun, empenhado em pellejas, e mortificado por innumeras derrotas, teve uma noite um sonho radioso, difficil de explicar. Consultado sobre o caso um lettrado favorito, an?o por signal e muito feio, mas um po?o de sciencia, elle disse ao soberano, ap?s magnos processos de magia, que o sonho revelava que os deuses lhe haviam destinado certa dama por esposa, forte de genio e habilissima na guerra, a quem mais tarde se deveria a salva??o do estado.

O an?o dispunha-se a proseguir, depois de curta pausa; mas n?o quiz mais ouvir o imperador; e eil-o cavalgando o ginete dos cortejos, em pompas de comitiva festival, dirigindo-se para onde vivia a sua bella, conforme as indica??es do an?osinho. Atravessa povoados, galga montanhas, desce valles; v?a, n?o corre, sua magestade; v?a nas azas da esperan?a, pula-lhe o cora??o em mil anhelos; e assim foi dar com Tchong-Mou-In.

Imagina-se a scena. N?o ha palavras que descrevam o desapontamento do monarcha. Tremulo de indigna??o, rompeu logo em iras e em blasphemias; pela mente, passaram-lhe de subito processos de torturas a exercer; e d'um gesto esporeou a alimaria, no intuito de regressar ao seu palacio. Ah! mas o soberano n?o contava que a dama, que a principio o recebera com doces humildades de etiqueta, que a dama, expulsa embora do ceu e do convivio dos seus deuses, ainda d'elles auferia benevolentes protec??es. A dama, n'um esgar provocante da sua face azul, arreganhando os dentes e estendendo solemne a m?o papuda, conteve d'um aceno suggestivo a furia do cavallo, e vomitou ao cavalheiro, severos vaticinios. Gritou-lhe que havia de casar com ella, se n?o quizesse alli ficar eternamente quedo; gritou-lhe que havia de recebel-a como imperatriz, e que ao seu bra?o de mulher, astuto e vigoroso todavia, teria de confiar altas emprezas. Emfim, para encurtar raz?es, e apressar o fim da historia, direi que o imperador desfez-se em cortezias e desculpas, venceu-lhe o asco e o medo, e tudo prometteu. N?o tardou que aquelle monstro feminino lhe entrasse pela casa, rude e plebeu, endiabrado, dispensando cerimonias, transportando ella propria ?s costas o enxoval--dois cabazes, uma thesoira, um espelho, um pente, uma vassoura, uma bacia de lavar o rosto,--utensilios que, desde ent?o at? hoje, como que ficaram consagrados, symbolisando do lar domestico o nucleo indispensavel.

Tres mezes, consta, esteve o imperador alheio ? convivencia da esposa, prolongando-lhe por esta forma uma castidade fastidiosa, com que ella provavelmente, n?o contava. Paciencia. Por vezes, na fria intimidade dos sal?es, procurou desprestigial-a aos olhos dos vassallos. Diz-se que um dia, reunidas a esposa e a concubina favorita, uma aposta se fez, sobre qual das duas, em escripta, mais habil se mostrava; e para isto se combinou contar quantos caracteres eram ellas capazes de escrever no tempo necessario para arder de um pivete perfumado, que alguem foi collocar sobre uma urna proxima. Do lado da favorita, cuja cultura litteraria ? primorosa, est?o o imperador e dois validos; do lado da soberana, apostam tres lettrados, e um d'elles ? o an?o. Eil-a, a amante, interessada vivamente no certamen, toda olhos, toda atten??o, toda adoraveis fernesis dos seus bellos dedinhos c?r de leite, que empunham o fino pincel, e correm febrilmente sobre o papel que lhe trouxeram. A soberana, o mostrengo , face azul pousada nas manapulas, dedos disformes enfiando pela trunfa ruiva, olho impassivel e matreiro, relanceia, aparvalhada e immovel, a scena, e os espectadores. Sobresaltam-se os lettrados, que adivinham, n'uma eminente surriada, o desprestigio proprio no conceito do monarcha.--<>--A bruta n?o os escuta. Repetem se, multiplicam-se as instancias; at? que finalmente, attendendo a tantas supplicas, diz ella:--<>--Voam escudeiros, volvem breve:--<>--Ella indica que est? junto d'um armario. Os vassallos replicam:--<>--Ent?o berra a soberana:--<>--E tomando da vassoura, e ensopando-a n'uma mixordia de tinta, de que mandou encher a bacia que trouxera no enxoval, isto quando o pivete ia chegando j? ao termo, com a vassoura lambusou um enorme papel, d'um gesto apenas; e por milagre,--que s? assim se explica tal portento--appareceram nitidos, sublimes, mil e mil caracteres da mais adoravel forma caligraphica.

Na guerra, dirigindo ella mesma, em pessoa, a turba dos guerreiros, foi colhendo victorias e engrandecendo os seus dominios. Nos ardis, um primor.

Uma vez, convidados, imperatriz e imperador, para um banquete de monarchas, com os quaes andavam de guerrea porfiosa, um dos nobres apresentou aos convivas um enorme macaco que possuia, mono astuto nos seus modos de selvagem, e eximio n'um jogo ent?o em moda, semelhante ao gam?o dos nossos tempos.--<>--Trava-se o jogo em que a imperatriz n?o era forte, pouco affeita a prendas de sal?o, e sendo notorio que nos ceus, onde passara a juventude, o jogo ? prohibido. Coragem!... Primeira partida: ganha o mono. Segunda partida: ganha o mono. Tchong Mou-In desfalece em intimas angustias, julga-se perdida, quando ent?o se lembra de invocar os deuses. A sua divina ama, que nunca a abandon?ra, despede do ceu um aviso visivel s? para ella:--Toma este fructo; esconde-o na manga da cabaia, de modo que apenas o macaco d? f? d'elle, e joga resoluta.--Terceira partida: o mono dando vista do acepipe, banana ou coisa parecida, estremece de desejos; o trazeiro, onde parece residir a alma dos macacos, pula-lhe em sobresaltos, em anhelos, sobre o assento da cadeira; e com a dentu?a arreganhada, o olho em braza, em arco as espessas sobrancelhas, o bestunto por certo desvairado, balbucia gritinhos repetidos--eh, eh! eh, eh!--que irritam os convivas. A m?osita felpuda ainda vae mexendo as pedras, por habito, por dever, mas sem arte, sem intuito; e a raz?o foge-lhe, abandona-o--t?o imperativa ? a lambarice n'estes figur?es da fauna comica!--E perde a partida decisiva!

Um parenthesis na historia. Dizia-me ha dias um companheiro de desterro, dos raros com quem logro palestrar:--Ora v?ja voc? quantos macacos ha por este mundo, de gravata, e casaca, e rosa na carcella, quando n?o ? uma commenda, astutos no gam?o e n'outras prendas varias, quasi attingindo as alturas da audacia e do triumpho; n'um momento fatal, uma banana qualquer, mostrada a geito, desnortea-os, allucina-os, aniquilla-os... E que, por mais que fa?am, s?o macacos, embora a cauda se n?o v?ja, de certo occulta nas ceroulas, e ninguem ha que possa purgal-os, expurgal-os, do sangue dos av?s...

Continuo.

Uma das mais bellas fa?anhas que illustram a gloriosa mulher, se mulher ?, de quem me occupo, ? a seguinte. Travava-se ent?o renhida a lucta pelas armas, entre varios soberanos, j? com enfado de vencedores e de vencidos. Tai-Sun ia levando a melhor nas investidas. Eis que os reis desbaratados, unidos em conluio, julgam ir p?r termo a t?o irritante situa??o, e muito em seu proveito, propondo ao imperador um curioso problema.--N?o nos fa?aes a guerra. Aqui tendes uma perola, arrancada d'um annel; notae que tem dois furos esta perola, communicando entre si interiormente por um labyrintho de nove canaesinhos; se conseguis apresental-a enfiada n'uma linha, juramos-vos a paz e a entrega por inteiro de tudo que hoje ? nosso.

Irra! Em que apuros se viu o bom soberano em caso t?o difficil!... Os conselheiros ficaram-se calados, macambuzios, e nada aconselharam. Foi ent?o impingindo esta quest?o ? esposa, elle, que a n?o beijava, nem lhe queria, mas que em assumptos escabrosos s? n'ella tinha f?. Tchong-Mou-In recolhe-se, implora os deuses. A sua divina ama envia-lhe ent?o do ceu uma formiga, a primeira formiga que veiu a este mundo; e manda a verdade que se diga que essa formiga prehistorica era um nadinha differente das formigas contemporaneas, menos esbelta nas formas, mais bojuda. Tchong-Mou-In comprehende o precioso auxilio: ata uma linha a meio corpo do bichinho, leva-o assim junto da perola, junto d'um dos seus furos, por onde se v? for?ado a enfiar, n?o tardando que surda pelo outro, arrastando a competente linha atraz de si. ? a gloria!...

E n?o reparam hoje na delicadeza da formiga, leve a cintura, como a cintura d'uma dama espartilhada? D'antes n?o era assim. Consigna-se o facto como indicando ainda ?s gera??es presentes uma maravilhosa heran?a atavica, a impress?o do n? com que a linha se prendia e apertava a primeira formiga, a formiga lendaria, a m?e de todas as formigas que hoje passeiam sobre a terra.

Nada mais sobre o insecto. Poucas palavras apenas pelo que respeita ? soberana. Lei-San, a sua divina protectora, perdoou-lhe finalmente o passado sorriso de motejo, que valia uma injuria; despiu-a da pelle monstruosa que lhe dera, por expia??o do seu peccado, restituiu-lhe a peregrina belleza que lhe era propria... O imperador, antes que a consorte volvesse aos seus labores divinos, poude v?l-a, e por longos annos, no completo esplendor dos seus enlevos. O imperador, que j? lhe tributava incondicional venera??o, gra?as aos seus prodigios, que tanta ventura lhe trouxeram, e prosperidade ao imperio, poude ent?o tambem amal-a, amal-a apaixonadamente, embevecido em tanta gra?a, em tanta formosura. Imagine quem quizer como ?quelles amorosos as horas iriam correndo encantadoras, na serenidade mysteriosa do palacio, cingido por muralhas de marmore, e rodeado de jardins, e no afan de festejarem aquella lua de mel, tardia embora, que lhes apparecia no horisonte!...

OS DIABOS E OS VELHOS

A Nuno Queriol

Falla a lenda japoneza.

Era uma vez um velho, que tinha um enorme lobinho sobre a cara, na face por signal. Certo dia, achava-se elle na montanha, a cortar lenha--era esta a sua humilde profiss?o,--quando o surprehendeu uma terrivel tempestade, chuva a potes, ventania desabalada, o raio faiscando nas alturas; t?o terrivel, que se viu obrigado a ficar por aquelles sitios e a buscar um abrigo para a noite. Abrigo, na floresta, era difficil problema; um grande tronco de arvore, escavado pelos seculos, offereceu-lhe a unica guarida.

No seu posto, agachado e sem poder dormir, foi o velho passando tristes horas. Alta noite, principiou a dar raz?o d'um estranho vozear, longe a principio, mas pouco a pouco avisinhando-se-lhe--<>--E p?z-se a espreitar, curiosamente, sem sombra de receio.

Mettido no seu esconderijo, o rachador de lenha passou por todos os tormentos que o espanto, o susto e o desamparo juntos produzem no animo d'um velho. Por fim, passadas horas, ia j? folgando na festa--ou n?o fosse elle japonez!--e tal poder teve sobre elle a bambochata, que lhe venceu escrupulos e temores, e o levou a esta resolu??o formal.--<>--Surdindo ent?o da t?ca, barrete enfiado at? ?s orelhas, machadinha suspensa da cintura, ei-lo a reunir-se ? malta, a dar as boas-noites e a ensaiar passos de dan?a. Foi agora a vez de se espantarem os demonios; mas t?o comico era o velho, no seu pobre corpinho corcovado, avan?ando em meneios, e recuando ap?s, e virando-se para a direita em cortezias, e voltando-se para a esquerda em reverencias, e tra?ando no ar, com o p? descal?o, estupendas parabolas coreographicas, que desataram todos em ris?ta, gritando:--<>--E proseguiram depois, n'este proposito:--<>--

Consultaram-se entre si, e decidiram da consulta, extrahir-lhe o lobinho; muita gente do povo, ? notorio, considera este achaque como um valioso talisman para ser-se afortunado. Eil-os pois, olhos attentos, bra?os n?s, dedos palpando, lancetas e tenazes em ac??o; e o velho estendido sobre o solo, um segura-lhe uma perna, um outro a outra, outro prende-lhe os bra?os, outro delicadamente ampara-lhe a cabe?a; e sairam-se do caso com limpeza, n?o causando a menor d?r ao paciente. Depois, f?ram guardar o lobinho n'um estojo.

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