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Munafa ebook

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Read Ebook: Voltareis ó Christo? by Castelo Branco Camilo

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Ebook has 144 lines and 7974 words, and 3 pages

E desandou.

Fiquei a scismar, e suggeriu-se-me logo o pensamento de que eu seria chamado a ouvir de confiss?o a senhora inferma.

Esperei duas horas, durante as quaes rezei as minhas rezas.

Voltou o taciturno fidalgo, e disse laconicamente:

--Ha aqui uma mulher doente que se quer confessar.

<

--Siga o creado que o est? esperando no corredor--tornou elle.

Sahi ao corredor. O creado que me estava esperando era o mais mal encarado homem que ainda vi na minha vida. Afusilavam-lhe os olhos como brazas. A testa, unico espa?o alumiado d'aquella cara barba?uda, sulcavam-na n?o sei se cicatrizes, se ulcera??es da morphea. A corpulencia era agigantada, e o carregar do sobr?lho batia no cora??o d'um homem como o subito coriscar dos olhos de um tigre que rebenta d'entre os carrascaes d'um deserto. Os pintores christ?os nunca souberam bosquejar Lucifer, porque semelhante homem j?mais deu nos olhos de artista, que desejasse fazer bem conhecida a plastica do diabo com feitio de gente.

Segui-o com calafrios, superiores ? minha ras?o que me aconselhava tranquillidade.

Hoje, volvidos quinze annos, conto isto com certo sorriso de facil coragem; mas, nos primeiros tempos, aquelle vulto andava terrivelmente associado ao quadro negro que vou tentar descrever.

O medonho guia mostrou-me a porta de um quarto, e resmuneou:

--Levante o fecho, e entre.

? primeira vista o que pude extremar das trevas era um clar?o azulado, como de lamparina ba?a, cuja claridade se esvaecia logo absorvida pela escura algidez da alcova.

Avisinhei-me a passos tremulos da lampada, e distingui um leito, e na almofada do leito um vulto. Fixei o que me parecia ser um rosto de crean?a, e pude entrever um semblante de mulher, com os olhos cravados em mim, olhos que vasquejavam os derradeiros clar?es, olhos como devem de ser os dos spectros que surgem subitaneos nas trevas aos perversos que negam Deus e temem os espectros.

--Approxime-se, snr. A moribunda sou eu--disse ella com voz rouca, mas serena.

--Falle baixo que nos escutam--voltou ella ciciando as palavras, e esbugalhando os olhos para a porta.

<

--Bem sei; mas isso n?o importa... Quero que me ou?a; mas muito baixinho... Vou contar-lhe a minha vida como a Deus; mas n?o me confesso como a um padre... ? a um homem que ha de ter pena de mim, depois de me ouvir; e me ha de fazer um servi?o que lhe pede uma agonisante, que cr? em Deus; mas n?o pode crer na religi?o feita por homens que tem a semelhan?a do algoz que me mata.

Isto dizia ella de afogadilho e febril, mas com abafa??es e ancias augmentadas pelo medo de ser escutada.

<

--N?o, snr.; eu n?o creio na confiss?o. Do mal que fiz estou perdoada; tenho soffrido todas as torturas d'este mundo; se as ha no outro, nenhuma p?de assustar-me.

O meu dever seria combater a incredulidade d'esta senhora com os solidos argumentos de que disp?e a theologia contra mais poderosos adversarios; abstive-me, por?m, de exacerbar o animo affligido da inferma por me parecer extemporanea a discuss?o e recear que o tempo escasseasse ao triumpho, nem sempre prompto, dos bons principios. N?o obstante, repliquei, no intento de encaminhal-a ? piedade:

--V? v?r se alguem nos escuta...--insistiu ella, apontando para a porta com a m?o descarnada.

Fui com repugnancia, figurando-se-me que a minha posi??o no gremio d'esta familia sinistra ia assumindo certa gravidade e um ar de mysterio mais ou menos arriscado. Abri cautelosamente a porta, olhei ao longo do corredor, e nada vi; salvo l? ao cabo um lampe?o a tremer baloi?ado pelas esfusiadas de vento que assobiava no tecto. Fechei a porta, asseverando ? enferma que ninguem nos escutava. Ella ent?o sentou-se com violento impeto no leito, aconchegou do pesco?o, que transpirava, a c?lcha da cama, bebeu alguns tragos de agua, e balbuciou com anciosas suspens?es:

--Casaram-me ha seis annos com este homem que me mata. Eu amava outro homem, que n?o teve cora??o nem honra que me salvasse de tamanho verdugo. Meu pae sacrificou-me, cuidando que me felicitava. O homem que eu amava deixou-me sacrificar, porque n?o tinha peito que supportasse o peso de uma mulher pobre. Vim de Lisboa, onde o dono d'esta casa era deputado. Vim; e, ao cabo de alguns mezes, meu marido arrependera-se de se ter enganado, cuidando que uma mulher simplesmente formosa, mas sem amor, poderia encher-lhe as ambi??es, e dar-lhe o contentamento que ella n?o tinha. Saciou-se, enojou-se, aborreceu-me. N?o me deu rivaes, por que s? quem ama se sente ultrajada pelas infidelidades. Eu n?o conheci rivaes: conheci apenas mulheres que n'esta casa valiam e mandavam mais do que eu.

Voltou ? camara meu marido. Aqui fiquei, n?o obstante lhe pedir com muitas lagrimas que me deixasse ir v?r meu pae, e meus dous irm?os que tinham vindo da Africa, onde haviam estado alguns annos negociando. Meu marido demorou-se anno e meio em Lisboa. N'este longo intervalo chorei muito, e s? deixei de chorar, quando... quando me vinguei. Comprehende-me?

--Vinguei-me... mas foi a paix?o que me deu for?as... Houve um homem que teve por mim um grande amor e um grande d?. Amei-o. Luctei. Pedi a Deus que me ajudasse, que me fortalecesse. Pedi ? alma de minha honrada m?e que me amparasse... pedi a meu marido que me deixasse ir para si ou para a companhia de meu pae... Nem Deus, nem minha m?e, nem meu marido me valeram... Succumbi... A minha culpa foi cega. Confiei-me d'uma creada que tinha chorado comigo. Fui atrai?oada. Meu marido teve denuncia da minha queda, e appareceu aqui inesperadamente. Nada me disse. Tratou-me com a mesma frieza, com o mesmo despreso. N?o estranhei. O homem, que eu amava, era ainda parente d'elle e estudava em Coimbra. Tinha cora??o cheio de ancias e desejos da morte. Comprehendeu este infeliz que meu marido desconfiava. Quiz fugir comigo para Hespanha, e eu resisti, mais por amor d'elle que do meu credito. O meu cumplice n?o podia com o encargo, e iria viver ou morrer miseravelmente em paiz estranho.

Passados dias, deixei de ter noticias d'elle. Imaginei-o j? em Coimbra, posto que n?o fosse tempo de aulas. Correram trez mezes. Nova nenhuma. A criada que me fallava d'elle, recebido o premio da trai??o, tinha fingido que sua familia a chamava. S? ent?o ouvi dizer a outra criada que o parente de meu marido desapparec?ra sem dizer a ninguem o seu destino; e que a familia d'elle vivia consternada com tal successo, enviando a toda a parte indaga??es inuteis.

Seis mezes depois que meu marido volt?ra de Lisboa, soube eu que se estava preparando este quarto por sua ordem. Vim v?r as obras, e perguntei-lhe para que era o armario estreito que se estava fazendo n'esta parede e para que eram as grades na janella. Meu marido respondeu: <>

Concluidas as obras, vi que a minha cama era para aqui mudada, com tudo que me pertencia.

Uma noite, meu marido conduziu-me a este quarto. Fechou-se por dentro e disse-me: <> E, dizendo isto, abriu aquelle armario, e apontou para um esqueleto, dizendo: <>

Eu cahi por terra sem sentidos--proseguiu ella, limpando as lagrimas, e aspirando com for?a--Quando voltei ? vida, cuidei que sahia d'um sonho. Ouvi dar meia noute. Era tudo escurid?o n'este quarto. Apalpei ? volta de mim. N?o conheci onde estava. Continuei apalpando. Pousei as m?os n'uma coisa fria e aspera que estremeceu. Recuei horrorisada... Eram ossos... eram as costellas do esqueleto. Ent?o acordei... ent?o me fugiu outra vez a ras?o com um grito do peito dilacerado. Cahi outra vez para diante com a face de encontro aos ossos frios, horrivelmente frios...--

E ella estralejava com os dentes convulsos, e apertava a roupa no pesco?o. Apoz longo espa?o, proseguiu:

--Ao romper do dia, abri uma janella com o proposito de me suicidar. Dei com a face nas grades. Lancei-me ? porta que estava fechada por f?ra, e gritei por soccorro. Abriu-se. Vi um creado com um aspecto amea?ador, impondo-me silencio. Este creado era um criminoso que meu marido acolh?ra para o salvar da justi?a que o perseguia. Era esse mesmo que o trouxe aqui ha pouco. ? o unico ente vivo que eu vejo ha dois annos duas vezes por dia, quando me traz alimentos. Foi elle quem matou e espeda?ou aquelle infeliz...

E, dizendo, apontava para o armario do esqueleto. Continuou:

--Eu quiz suicidar-me pela fome. N?o pude. Quando as agonias da morte come?avam, eu lan?ava-me vertiginosamente sobre a comida, e devorava-a sem a consciencia do que fazia. D'outra vez consegui com um garfo romper uma veia; mas o sangue estancou; senti ancias mortaes; envelheci; desfigurei-me, segundo o que sinto, se palpo o meu rosto; que eu ha dois annos me n?o vi n'um espelho... N?o consegui morrer. Voltei-me para Deus com rogos, com desesperadas supplicas. Orei muito, chorei muito, e obtive um grande beneficio. Cahi n'um desalento, n'uma somnolencia de moribunda que durou n?o sei se dias se annos. Depois, quiz levantar-me d'este leito, e j? n?o pude. Comecei a pedir a Deus a morte, e a sentil-a avisinhar-se pela m?o da divina caridade. Ha de haver trez horas que entrou aqui o confidente do meu carrasco perguntando-me se me queria confessar. Fiquei espantada da religi?o d'estes algozes, e respondi que sim; mas o que eu queria, snr. padre--ajuntou ella estendendo para mim impetuosamente os bra?os--era pedir-lhe que depois da minha morte, fa?a saber a meus irm?os este miseravel fim que eu tive, para que elles me vinguem...

Acabava a infeliz de proferir estas palavras em voz mais desafogada, quando a porta que eu havia fechado por dentro se abriu impellida por um valente encontro.

Era o marido.

Faiscavam-lhe ascuas de rancor os olhos injectados. Crispavam-se-lhe os bei?os retrahidos. A colera engasgava-o a ponto de tartamudear estas vozes ejaculadas a trancos:

--Seus irm?os que venham c? e eu lhes contarei a vida da sua honrada irm?!

E ella cobriu os olhos com as m?os, e resvalou para dentro da roupa, como se desejasse cahir na sepultura.

Eu caminhei placidamente para aquelle homem terrivel, abeirei-me d'elle que me fitava com sobranceria, ajoelhei e disse-lhe com a voz tremente de lagrimas:

--Perd?e-lhe. Deixe-a morrer em paz. Deixe-a experimentar os beneficios da sua compaix?o para implorar confiadamente os da misericordia divina.

Encarou-me d'um modo indefinivel. Sahiu do quarto, e, j? f?ra, murmurou seccamente:

<

Relancei um derradeiro olhar para o leito: n?o a vi; mas ouvia o solu?ar alto e cavernoso do peito que se esphacellava.

Mal entrei ao quarto onde havia de pernoitar, rebentaram-me as lagrimas copiosas. Levantei a Deus o espirito repassado de terror e compaix?o, pedindo-lhe que despenasse a penitente, ou radiasse luz de commisera??o em t?o carniceiras entranhas.

N'este lance entrou elle, assentou a m?o direita sobre o meu hombro, e disse:

<

--Respondo ajoelhando novamente a supplicar-lhe o perd?o da culpada.

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