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Munafa ebook

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Read Ebook: Iracema com uma noticia biographica do auctor by Alencar Jos Martiniano De

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Ebook has 36 lines and 5692 words, and 1 pages

stricto de paz.

CARTA AO DR. JAGUARIBE

Eis-me de novo, conforme o promettido.

J? leu o livro e as notas que o acompanham; conversemos pois.

Conversemos sem cerimonia, em toda a familiaridade, como se cada um estivesse recostado em sua rede, ao vaivem do languido balan?o, que convida ? doce pratica.

Se algum leitor curioso se puzer ? escuta, deixal-o. N?o havemos por isso de mudar o tom rasteiro da intimidade pela phrase garrida das salas.

Sem mais.

Ha de recordar-se voc? de uma noite que entrando em minha casa, quatro annos a esta parte, achou-me rabiscando um livro. Era isso em uma quadra importante, pois que uma nova legislatura, filha de nova lei, fazia sua primeira sess?o; e o paiz tinha os olhos n'ella, de quem esperava iniciativa generosa para melhor situa??o.

J? estava eu meio descrido das cousas, e mais dos homens; e por isso buscava na litteratura divers?o ? tristeza que me infundia o estado da patria entorpecida pela indifferen?a. Cuidava eu por?m que voc?, politico de antiga e melhor tempera, pouco se preoccupava com as cousas litterarias, n?o por menos pre?o, sim por voca??o.

A conversa que tivemos ent?o revelou meu engano; achei um cultor e amigo da litteratura amena; e juntos lemos alguns trechos da obra, que tinha, e ainda n?o perdeu, preten??es a um poema.

?, como viu o como ent?o lhe esbocei a largos tra?os, uma heroida que tem por assumpto as tradic??es dos indigenas brazileiros e seus costumes. Nunca me lembrara eu de dedicar-me a esse genero de litteratura, de que me abstive sempre, passados que foram os primeiros e fugaces arroubos da juventude. Supporta-se uma prosa mediocre, e estima-se pelo quilate da id?a; mas o verso mediocre ? a peor triaga que se possa impingir ao pio leitor.

Tanto bastou para que suppozessem que o escriptor se referia a si, e tinha j? o poema em m?o; varias pessoas perguntaram-me por elle. Metteu-me isto em brios litterarios; sem calcular das for?as minimas para empresa t?o grande, que assoberbou dois illustres poetas, tracei o plano da obra, e comecei-a com tal vigor que a levei quasi de um folego ao quarto canto.

Esse folego susteve-se c?rca de cinco mezes, mas amorteceu; e vou-lhe confessar o motivo.

Desde cedo, quando come?aram os primeiros pruridos litterarios, uma especie de instincto me impellia a imagina??o para a ra?a selvagem indigena. Digo instincto, porque n?o tinha eu ent?o estudos bastantes para apreciar devidamente a nacionalidade de uma litteratura; era simples prazer que me deleitava na leitura das chronicas e memorias antigas.

Mais tarde, discernindo melhor as cousas, lia as produc??es que se publicavam sobre o thema indigena; n?o realisavam ellas a poesia nacional, tal como me apparecia no estudo da vida selvagem dos autoctonos brazileiros. Muitas pecavam pelo abuso dos termos indigenas accumulados uns sobre outros, o que n?o s? quebrava a harmonia da lingua portugueza, como perturbava a intelligencia do texto. Outras eram primorosas no estylo e ricas de bellas imagens; por?m certa rudez ingenua de pensamento e express?o, que devia ser a linguagem dos indigenas, n?o se encontrava ali.

Entretanto, os selvagens de seu poema falam uma linguagem classica, o que lhe foi censurado por outro poeta de grande estro, o dr. Bernardo Guimar?es; elles exprimem id?as proprias do homem civilisado, e que n?o ? verosimil tivessem no estado da natureza.

Sem duvida que o poeta brazileiro tem de traduzir em sua lingua as id?as, embora rudes e grosseiras, dos indios; mas n'essa traduc??o est? a grande difficuldade; ? preciso que a lingua civilisada se molde quanto possa ? singeleza primitiva da lingua barbara; e n?o represente as imagens e pensamentos indigenas sen?o por termos e phrases que ao leitor pare?am naturaes na b?cca do selvagem.

O conhecimento da lingua indigena ? o melhor criterio para a nacionalidade da litteratura. Elle nos d? n?o s? o verdadeiro estylo, como as imagens poeticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendencias de seu espirito, e at? as menores particularidades de sua vida. ? n'essa fonte que deve beber o poeta brazileiro; ? d'ella que ha de sahir o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino.

Commettendo portanto o grande arrojo, aproveitei o ensejo de realisar as id?as que me vagueavam no espirito, e n?o eram ainda plano fixo; a reflex?o consolidou-as e robusteceu.

Na parte escripta da obra foram ellas vasadas em grande copia. Se a investiga??o laboriosa das bellezas nativas feita sobre imperfeitos e espurios diccionarios exhauria o espirito; a satisfa??o de cultivar essas flores agrestes da poesia brazileira, deleitava. Um dia por?m fatigado da constante e aturada medita??o ou analyse para descobrir a etymologia d'algum vocabulo, assaltou-me um receio.

Todo este improbo trabalho que ?s vezes custava uma s? palavra, me seria levado ? conta? Saberiam que esse escropulo de ouro fino, tinha sido desentranhado da profunda camada, onde dorme uma ra?a extincta? Ou pensariam que f?ra achado na superficie e trazido ao vento da facil inspira??o?

E sobre esse, logo outro receio.

A imagem ou pensamento com tanta fadiga esmerilhados, seriam apreciados em seu justo valor, pela maioria dos leitores? N?o os julgariam inferiores a qualquer das imagens em voga, usadas na litteratura moderna?

N?o ? bonito? N?o est? ahi uma joia da poesia nacional?

Pois talvez haja quem prefira a express?o rei do caminho, embora os brasis n?o tivessem rei, nem id?a de tal institui??o. Outros se inclinar?o ? palavra guia, como mais simples e natural em portuguez, embora n?o corresponda ao pensamento do selvagem.

Ora escrever um poema que devia alongar-se para correr o risco de n?o ser entendido, e quando entendido n?o apreciado, era para desanimar o mais robusto talento, quanto mais a minha mediocridade. Que fazer? Encher o livro de gryphos que o tornariam mais confuso e de notas que ninguem l?? Publicar a obra parcialmente para que os entendidos proferissem o veredicto litterario? Dar leitura d'ella a um circulo escolhido, que emittisse juizo illustrado?

Todos estes meios tinham seu inconveniente, e todos foram repellidos: o primeiro afeiava o livro; o segundo o truncava em peda?os; o terceiro n?o lhe aproveitaria pela ceremoniosa benevolencia dos censores. O que pareceu melhor e mais acertado foi desviar o espirito d'essa obra e dar-lhe novos rumos.

Mas n?o se abandona assim um livro come?ado, por peor que elle seja; ahi n'essas paginas cheias de rasuras e borr?es dorme a larva do pensamento, que pode ser nympha de azas douradas, se a inspira??o fecundar o grosseiro casulo. Nas diversas pausas de suas preoccupa??es o espirito volvia pois ao album, onde est?o ainda incubados e estar?o cerca de dois mil versos heroicos.

Conforme a benevolencia ou severidade de minha consciencia ?s vezes os acho bonitos e dignos de verem a luz; outras me parecem vulgares, monotonos, e somenos a quanta prosa charra tenho eu estendido sobre o papel. Se o amor de pae abranda afinal esse rigor, n?o desvanece porem nunca o receio de "perder inutilmente meu tempo a fazer versos para cabocolos."

O assumpto para a experiencia, de antem?o estava achado. Quando em 1848 revi a nossa terra natal, tive a id?a de aproveitar suas lendas e tradi??es em alguma obra litteraria. J? em S. Paulo tinha come?ado uma biographia do Camar?o. A mocidade d'elle, a amisade heroica que o ligava a Soares Moreno, a bravura e lealdade de Jaca?na, alliado dos portuguezes, e suas guerras contra o celebre Mel Redondo; ahi estava o thema. Faltava-lhe o perfume que derrama sobre as paix?es do homem a belleza da mulher.

Este livro ? pois um ensaio ou antes amostra. Ver? realisadas n'elles as minhas id?as a respeito da litteratura nacional; e achar? ahi poesia inteiramente brazileira, haurida na lingua dos selvagens. A etymologia dos nomes das diversas localidades, e certos modos de dizer tirados da composi??o das palavras, s?o de cunho original.

Comprehende voc? que n?o podia eu derramar em abundancia essa riqueza no livrinho agora publicado, porque ellas ficariam desfloradas na obra de maior vulto, a qual s? teria a novidade da fabula. Entretanto ha ahi de sobra para dar materia ? critica, e servir de base ao juizo dos entendidos.

Se o publico ledor gostar d'essa forma litteraria, que me parece ter algum attractivo e novidade, ent?o se far? um esfor?o para levar ao cabo o come?ado poema, embora o verso pare?a na ?poca actual ter perdido a sua influencia e prestigio. Se por?m o livro f?r acoimado de serdi?o e tedioso, ou se Iracema encontrar a usual indifferen?a, que vae acolhendo o bom e o mau com a mesma complacencia, quando n?o ? o silencio desdenhoso e ingrato; ent?o o auctor se desenganar? de mais esse genero de litteratura, como j? se desenganou do theatro; e os versos como as comedias passar?o para a gaveta dos papeis velhos, reliquias autobiographicas.

Depois de concluido o livro e quando o reli apurado na estampa, conheci me tinham escapado sen?es que poderia corrigir se n?o fosse a pressa com que o fiz editar; noto algum excesso de compara??es, certa semelhan?a entre algumas imagens, e talvez desalinho no estylo dos ultimos capitulos que desmerecem dos primeiros. Tambem me parece devia conservar aos nomes das localidades sua actual vers?o, embora corrompida. Se a obra tiver segunda edi??o ser? escoimada d'estes e de outros defeitos, que lhe descubram os entendidos.

Agosto de 1995.

J. DE ALENCAR.

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