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Munafa ebook

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Read Ebook: A brazileira de Prazins: scenas do Minho. by Castelo Branco Camilo

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Ebook has 837 lines and 58855 words, and 17 pages

Produced by: Laura Natal Rodrigues

COLEC??O LUSIT?NIA

CAMILLO CASTELLO BRANCO

A BRAZILEIRA DE PRAZINS

CAMILLO CASTELLO BRANCO

A BRAZILEIRA DE PRAZINS

SCENAS DO MINHO

Edi??o conforme a 1?, revista pelo Auctor

LIVRARIA L?LO, LIMITADA--EDITORA

AILLAUD & L?LOS, Limitada--R. N. do Carmo, 80 a 84--LISBOA

INTRODUC??O

Entre as diversas molestias significativas da minha velhice, o amor aos livros antigos--a mais dispendiosa--leva-me o dinheiro que me sobra da botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de pilulas e tizanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me illustro com os archaismos, arruino o estomago e enferrujo o cerebro em uma caturrice academica.

Disse-me a dadivosa viuva de Villalva que os livros estavam na ad?ga, havia mais de trinta annos, desde que seu cunhado, que estudava para padre, morr?ra ethico; que o seu homem--Deus lhe falle n'alma--mand?ra calear o quarto onde o estudante acab?ra, e atirou para as lojas tudo o que era do defunto--trastes, roupa e livralhada. Contou-me isto seccamente do extincto cunhado, ao mesmo tempo que ro?ava com a m?o fagueira o ventre gravido de uma gata malteza que lhe resbunava no rega?o, passando-lhe pela cara a cauda em attritos d'uma flacidez de arminho. E eu que dedico aos bichos um affecto nostalgico, uma sensibilidade retroactiva, um atavismo que me retrocede aos meus saudosos tempos de gorilha, olhava para a gata que me piscava um olho com uma meiguice antiga--a das meninas da minha mocidade que piscavam. Onde isto vai!

Martha.

Voltei a casa da snr.? Joaquina, muito a?odado, como um anthropologista que procura um dente pre-historico, e perguntei-lhe se o seu cunhado se chamava Jos? Dias; e se tinha alguma conversada, quando morreu.--Que sim, que o cunhado era Jos? Dias e que morr?ra pela Maria da Fonte.

--Pois elle amou a Maria da Fonte?--perguntei com ardente curiosidade historica, para esclarecer a minha patria com um episodio romanesco das suas guerras civis. Ella sorriu e respondeu:

--Agora! Quer dizer que o meu cunhado morreu quando por ahi andavam os da Maria da Fonte a tocar os sinos e a queimar a papellada dos escriv?es, sabe vm.^c??--Acho que foi ent?o ou por perto. E ajuntou:--Elle gostava ahi muito d'uma mo?a, isso ? verdade. Era a Martha...

--Martha?--disse eu com a satisfa??o de v?r confirmada a assignatura do bilhete.

Vm.^c? conhece-a?

--N?o conhe?o.

--? a brazileira de Prazins, a mulher do Feliciano da Retorta, que tem quinze quintas entre grandes e pequenas.

--Bem sei; mas nunca vi essa mulher.

--N?o que ella nunca sae do quarto; est? assim a modos de atolambada ha muito tempo. Credo! ha muitos annos que a n?o vejo. D?-lhe a gota, salvo seja, e estrebucha como se tivesse coisa m? no interior. ? uma pena. N?o sabe o que tem de seu. O Feliciano ? o homem meus rico d'estes arredores, e vivem como os cabaneiros, de caldo e p?o de milho. Elle quando vai ao Porto receber um alqueire de soberanos que lhe vem do Brazil todos os annos, vai a p?, e mette ao bolso umas c?deas de bor?a e quatro ma??s para n?o ir ? estalagem.

Interrompi com interesse de artista:

--Disse-me que ella endoudecera. Foi logo depois da morte do seu cunhado?

--Isso j? me n?o escordo. Quando eu vim casar para aqui j? meu cunhado tinha morrido. O que me lembra ? dizer-me o meu defunto, que Deus tem, que o rapaz ganhou doen?a do peito p'r?m?r d'ella. Esses casos ha muita gente que lh'os conte. Ha por ahi muito homem do seu tempo. Pergunte isso ao snr. reitor de Caldellas que andou com elle nos estudos e sabe todas essas trapalhadas.--E n'um tom de noticia festival:--Olhe que o gatinho nasceu esta noite; l? lh'o mando assim que estiver creado. Quer que lhe corte as orelhas e o rabito?

--Fa?a-me o favor de lhe n?o cortar nada.

Eu tinha lido, dias antes, a judiciosa critica de uma dama ingleza ? nossa costumeira de desorelhar e derrabar gatos. Ella, lady Jackson, escreve que lhe fazem compaix?o os pobres bichanos que, sem cauda nem orelhas, est?o como que envergonhados de si mesmos. Excellente senhora!

Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldellas na feira de Santo Thyrso. Achei-lhe um semblante convidativo, animador a entabolar-se com elle uma indaga??o de curiosidades sentimentaes.

Fazia respeitavel a sua batina sem nodoas o padre Osorio. Parece que tambem as n?o tem na vida. Passa por ser um velho triste, que n?o teve mocidade, nem as ambi??es que supprem os d?ces affectos do cora??o mutilados pelo calculo ou congelados pelo temperamento. Ha trinta e dous annos que pastoreia uma das mais pobres freguezias do arcebispado. Pr?gou alguns annos com applauso dos entendidos e inutilidade dos peccadores. A rhetorica ? a arte de fallar bem; mas os vicios s?o a arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa, embora n?o se diga.

O vigario subia ao pulpito e improvisava coisas de grande engenho em linguagem muito singela. Affirmava que Deus era t?o bom, t?o previdente, que dera ? condi??o enfermi?a do homem for?as vitaes, sobrecellentes que resistiam ? destrui??o; e que a Natureza, grande milagre do seu Creador, s? de per si era bastante para a si mesma se restaurar. Ora, um abbade rico, bacharel em theologia, que lhe ouvira estas id?as assaz naturalistas, perguntou-lhe, ? puridade, se elle negava os milagres. O reitor respondeu que a respeito das sez?es e dos leicen?os acreditava mais na lanceta e no sulfato de quinino. Depois, accrescentou:--Deus fez o supremo milagre da sciencia para centuplicar as for?as ? natureza enfraquecida.--O theologo enrugou scientificamente a fronte cheia de suspeitas e replicou:--O snr. reitor foi ferido da peste do seculo. Est? iscado de Voltaire e de Alexandre Herculano. Deixou-se contaminar. Mundifique-se. Estude mais e melhor.--O reitor de Caldellas afastou-se triste, e nunca mais frequentou o pulpito.

Estas informa??es e o aspecto lhano, harmonico do padre, animaram-me a dizer-lhe que solicitara o seu conhecimento para lhe pedir alguns esclarecimentos a respeito de uma carta encontrada em um livro que pertencera ao seu condiscipulo Jos? Dias de Villalva. Recorda-se? perguntei.

--Se me recordo do meu pobre Jos? Dias! Pois n?o recordo? Parece-me que ainda sinto n'este bra?o o peso enorme da sua face morta, e j? l? v?o trinta e cinco annos. ? preciso ter na alma dolorosas reminiscencias para se recordar um amigo morto ha tantissimo tempo, n?o lhe parece? Como sabe v. que existiu esse obscuro filho de um lavrador?

Mostrei-lhe a carta. O padre olhou para a assignatura, gesticulou affirmativamente, e, ap?s uma breve pausa de recolhimento com as suas recorda??es, disse:

--Fui eu que puz esta carta entre as paginas de um livro do Dias. O meu pobre condiscipulo, quando este papel lhe foi mandado ? cama, j? n?o o podia l?r. Tinha cahido no torpor, na indifferen?a que, a meu v?r, ? a compaix?o da Providencia pelos que morrem amando e n?o querendo morrer. J? n?o via a vida nem a morte. Li esta carta; e, como elle nada me perguntou, eu nada lhe disse... Agora me recordo perfeitamente. Era um commento de Horacio que eu lia nos seus intervallos de modorra, afim de dar ao meu animo uma folga que me fortalecesse para resistir ao golpe final. J? sei pois o que voc? deseja. Quer saber se esta Martha est? no caso de merecer a consagra??o romantica que Bernardin de Saint-Pierre usurpou ?s d?res verdadeiras, para coroar d'uma eterna aureola a sua phantastica Virginia.

--N?o vou t?o longe, respondi com a modestia genial dos escriptores que immortalisam. A brazileira de Prazins n?o p?de contar com o seu immortalisador em mim, nem me parece bastante fecundo o assumpto. Sei que temos um namoro de uma menina com um estudante, o estudante morre e a menina casa com um sujeito que tem quinze quintas. Se n?o ha mais do que isto...

O cura interrompeu:--Vejo que sabe quem ? Martha; mas n?o a conhece bem. Virginia e Francesca e Julieta n?o s?o mais dignas de piedade nem de romance. Parece-me que o amor que enlouquece e permitte que se abram intercadencias de luz no espirito para que a saudade rebrilhe na escurid?o da demencia, ? incomparavelmente mais funesto que o amor fulminante. O que ? vulgar ? morrer logo ou esquecer quinze dias depois. Quando eu tinha uma irm? que lia novellas, ? custa de lh'as ouvir analysar com um enthusiasmo digno de melhor emprego, achei-me envolvido na litteratura de Sue, de Souli? e de Balzac, a ponto de fazer presente do meu santo Affonso Maria de Ligorio e da minha Theologia moral de Pizelli a um padre bom e atinado que me prophetisou que minha irm? havia de morrer doudas a scismar nas patacuadas das novellas. Ella n?o morreu douda; mas pensava em romancear a historia de Martha, porque dizia ella que, tendo lido trezentos volumes de novellas, n?o encontr?ra caso imitante.--E, dando-me o bilhete de Martha: Este quarto de papel ? o exordio de uma agonia original.

Como a exposi??o do reitor sahiu muito enfeitada de joias sentimentaes--detestavel especie archeologica que ninguem tolera,--farei quanto em mim couber por, uma a uma, ir mondando e refugando as flores de modo que as scenas dramaticas se exponham aridas, bravias como s?rro de montanha por onde lavrou incendio, sem deixar bonina, sequer folhinha de giesta em que a aurora imperle uma lagrima. A Aurora a chorar! de que tempo isto ?! Como a gente, sem querer, mostra n'uma id?a a sua certid?o de idade e uma reliquia testemunhal da idade de pedra! Oh! os bigodes tingem-se; mas as phrases--madeixas do espirito--s?o refractarias ao rejuvenescimento dos vernizes.

Martha era filha de um lavrador mediano que tinha em Pernambuco um irm?o rico de quem dizia o diabo. Chamava-lhe ladr?o porque, no espa?o de vinte annos, lhe mandara tres moedas, com os seguintes encargos: ? m?e 6[CO]0 r?is fortes, ?s almas do Purgatorio, de Negrellos, 3[CO]0 r?is tambem fortes, que lh'os promettera quando embarcou, e o resto para elle--<<50 r?is, dizia, ? que o maroto, podre de rico, me mandou em vinte annos!>>

Martha ia nos quatorze quando o pai a quiz tirar da mestra. Cheg?ra-lhe aos ouvidos que os estudantes, m? canalha, lhe impeticavam com a filha. Queixou-se a Fr. Roque.

O egresso, resfolegando honradas coleras e pulverisa??es de esturrinho, mandou enfileirar os gargajolas na quadra da aula, e chamou a Martha.

--Qual foi d'estes tratantes o que implicou comtigo, cachopa?--perguntou o padre-mestre olhando-a por cima dos oculos, orbiculares, com as hastes oxidadas d'um cobre antigo. E, apontando para o primeiro da fileira que era o Jos? de Villalva:

--Foi este?

--Esse nunca me disse nada--respondeu com a voz tremula, toda vermelha, a rapariga.

--Foi este?

Martha n?o ergueu os olhos nem respondeu.

--Ent?o, m??a? qual foi dos nove? Dize l?. Tu que te queixaste ? que algum embarrou por ti.

--Eu n?o me queixei...--murmurou a interrogada.

Verdadeiramente ella n?o se queix?ra. Foi o Zeferino, o filho do alferes da Lamella, o mestre pedreiro que andando a construir um canastro na eira do padre-mestre, observ?ra que os estudantes rentavam ? cachopa, e ageitavam-se em attitudes abrejeiradas, como de quem espreita, quando ella subia a escada.

O denunciante ao pai de Martha foi elle, o pedreiro abastado, n?o porque o espica?assem n'essa denuncia o zelo dos bons costumes, e um justo odio ?s concupiscentes espionagens dos rapazes, mas por que gostava, dev?ras, da m??a. Elle passava j? dos trinta e dois e era a primeira vez que sentia no cora??o as alvoradas do amor, Fr. Roque, averiguado o caso, advertiu o pedreiro que n?o fosse m? lingua, que n?o andasse a difamar os seus discipulos, que se preparavam para o sacerdocio--uma coisa s?ria. O episodio acabaria assim menos mal, se dois dos estudantes, que se preparavam para o sacerdocio, mais fortes no fueiro que nas conjuga??es, desistissem de o moer a pauladas, uma noute, n'um pinhal. O mestre d'obras iniciou-se pelo martyrio obscuro n'um amor que principiava bastante mal. Elle nunca soube ao certo quem lhe bat?ra, e attribuiu a sova a ?mulos na arte, covardes e mysteriosos, por causa da construc??o de uma egreja que elle desdenh?ra, citando as regras do Vignola. Vinha a ser o desastre uma tenda por motivos de architectura--um martyrio de artista. Invejas. Por causa da Arte padec?ra o seu collega Affonso Domingues, o architecto da Batalha, e Jo?o de Castilho, o do convento de Thomar, e j? tinha padecido seu mestre, o Manoel Chasco, a quem inimigos quebraram a cabe?a na feira dos 21, por que elle, desfazendo na obra d'um collega, dissera que o botar?o d'um cunhal estava torto.

--Que era a v?r se o ladr?o mandava alguma coisa, dizia elle, pondo cuspo na obreia vermelha para fechar a carta.

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