Use Dark Theme
bell notificationshomepageloginedit profile

Munafa ebook

Munafa ebook

Read Ebook: A brazileira de Prazins: scenas do Minho. by Castelo Branco Camilo

More about this book

Font size:

Background color:

Text color:

Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page

Ebook has 837 lines and 58855 words, and 17 pages

--Que era a v?r se o ladr?o mandava alguma coisa, dizia elle, pondo cuspo na obreia vermelha para fechar a carta.

A segunda carta, que ella escreveu j? sem pauta, foi a Jos? Dias, ao estudante, que j? n?o estudava por causa das memorias nocivas ? sua saude fraca, um pel?m.

N'este tempo j? o Zeferino da Lamella se tinha declarado com o Sime?o de Prazins, de um modo quasi original.

--Voc? quanto deve, ? tio Sime?o?--perguntou.

--Quanto devo? Voc? quer pagar-me as dividas?

--P?de ser. Voc? deve ? Irmandade de N. Senhora de Negrellos um conto e cem mil r?is; voc? deve de tornas a seu irm?o quatrocentos. Ha-de andar l? para um conto e quinhentos, p'ra riba que n?o p'ra baixo.

--? isso; voc? sabe a minha vida melhor que eu a sua--um conto e quinhentos e pico.

--Quanto ? o pico?

--Obra de dez moedas, mais pinto menos pinto. Miudezas na loja ao mercador e um r?stito da vacca amarella que comprei ao Tarracha na feira dos 13.

--Voc? quer fazer um cambalacho?--tornou o pedreiro recuando o chap?u para a nuca e pondo-lhe as m?os espalmadas com for?a nos hombros.

--Se pintar... J? sei o que voc? quer... N?o me serve. Voc? quer comprar-me o lameiro da azenha--n?o vendo.

--Voc? falla serio, ? s?r Zeferino?

--Se fallo serio?! Ent?o voc? n?o sabe com quem ? trata.

--Ora bem--entendamo'-nos--? a rapariga que voc? quer, a rapariga estreme, sem dote nem escriptura?

--Eu n?o tenho sen?o uma palavra. J? lhe disse que sim.

--A rapariga ? sua.

Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira via, 48[CO]0 r?is, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12[CO]0 r?is para as arrecadas da sobrinha, e o resto ao irm?o. Dizia-lhe que estava a liquidar para vir, emfim, descan?ar de vez,--que j? tinha para os feij?es. Recommendava-lhe que fosse deitando o olho a uma ou duas quintas que se vendessem at? trinta ou quarenta mil cruzados; que se ainda houvesse conventos ? venda, os fosse apalavrando at? elle chegar.

--Quarenta mil cruzados, com um raio de diabos!--exclamou o Sime?o, e foi mostrar a carta ao padre-mestre Roque, ao Tr?pa de Santo Thyrso e ao ex-capit?o m?r de Landim; e, como encontrasse na feira o dono do mosteiro dos benedictinos, o Pinto Soares, um deputado gordo--a rhetorica viva do silencio mais facundo que a lingua, d'uma grande pacifica??o somnolenta--perguntou-lhe se queria vender as quintas dos frades, que tinha comprador. O Pinto Soares, como um homem que acorda com espirito e um pouco de atheismo, respondeu-lhe que n?o vendia para n?o transmittir ao comprador a excommunh?o que arranj?ra comprando bens das ordens religiosas. Mas o Sime?o, em materia e raios do Vaticano, tinha na sua estupidez a inven??o de Franklin. Continuava a perguntar a toda a gente se sabiam de conventos ? venda, ou quintas ahi para quarenta mil cruzados.

O Zeferino das Lamellas, o pedreiro que se julgava noivo por ter o negocio fechado em um conto, quinhentos e pico, procurou o lavrador para se cuidar dos banhos. O velhaco, depois de o ouvir com ares de abstrac??o palerma, disse-lhe a mastigar as palavras:

--Home, o caso mudou muito de figura. Ent?o voc? pelos modos ainda n?o sabe que vem ahi o meu irm?o de Pernambuco comprar quintas e conventos?

E come?ou a desenrolar o nastro gorduroso de uma carteira de coiro em que tinha recibos da decima, um aviso da junta de parochia para pagar a congrua, uma conta de azeviche contra maus olhados, uma ora??o manuscripta contra as maleitas, um officio antigo que o nomeava regedor, de que f?ra demittido pelos Cabraes, uma velha resalva de recrutamento, uns versos que elle recitara no natal, em um Auto do nascimento do Menino, onde elle fazia de rei mago, e finalmente o livrinho de Santa Barbara, muito cebaceo, com um lustro azulado de graxa e a carta do Feliciano t?o suja que parecia ter estado em infus?o de pingue.

--Voc? ainda n?o ouviu fallar d'esta carta!?--perguntou com sobranceria impertinente, dando saliva aos dedos para a desdobrar.--N?o se falla n'outra causa. Toda a gente sabe que vem ahi do Brazil o meu Feliciano para comprar quintas.

--J? me constou--disse o pedreiro,--mas voc? roe a corda ? conta d'isso, acho eu...--E como o lavrador hesitasse:--O negocio da rapariga est? feito ou n?o est? feito? Os homens conhecem-se pela palavra e os bois pelos cornos. Ponha p'ra'hi o que tem no interior.

O Sime?o mascava, torcia-se, mettia com dois dedos a carta estafada na carteira e resmungava:

--Voc?, emfim, isto ? um modo de fallar, como o outro que diz; voc? bem entende que ... sim...

--O que eu entendo physicamente fallando ? que voc? n?o me d? a rapariga.

--Deixe v?r, deixe v?r o que diz o meu irm?o--tartamudeava.

--Sabe voc? que mais?--volveu iracundo o architecto dando com o ?lho do machado n'um canhoto.--Voc? ? de m? casta. N?o tem palavra nem vergonha n'essa cara estanhada. Voc? ? da gera??o dos Travessas da Serra Negra, e basta... N?o lhe digo mais nada...--Allus?o pungente a um tio do Sime?o, o Bernab?, capit?o das maltas de salteadores que infestaram em 1835 aquella serra.

--Veja l? como falla...--interrompeu o lavrador ferido na sua linhagem.--Voc? n?o me deite a perder...

E o outro, n'um impeto de consciencia robusta:

--Voc? ? um safado. ? o que lh'eu digo. N?o guarda palavra em contracto que fa?a. Eu j? devia conhec?l-o. Faz para as matan?as seis annos que voc? justou comigo uma porca por quatro moedas e foi depois vendel-a ao Antonio do Eido por mais um quartinho. Lembra-se, seu alma de cantaro?--E n'uma irrita??o crescente:--Se voc? n?o fosse um velho, dava-lhe com este machado na caveira.--? muito esbandalhado nos gestos, com sarcasmo:--Guarde a filha que eu hei de achar mulher muito melhor que ella pelo pre?o, ouviu voc?? que leve o diabo a burra e mais quem a tange, como o outro que diz. Livrei-me de boa espiga. De voc? n?o p?de sahir cousa boa; e mais da m?e que ella teve, que j? l? est? a dar contas...

E o lavrador com extremada prudencia e na pacatez de um grande espirito de ordem e paz:

--Voc? n?o tem que desfazer na minha filha, ouviu?

--Ouvi, que n?o sou mouco. Ainda hontem a topei na bou?a do Reguengo de palestra com o estudante de Villalva. Espere-lhe a volta. A songuinha, que n?o olha direita p'ra um home, que anda alli esmadrigada de cabe?a ao lado, l? estava de m?o na ilharga a dar treta ao estudante, aquelle p?o de encher tripas, que ha-de ser mesmo um padre d'aquella casta! Olhe se elle lh'a quer para casar... Pois n?o quizeste?--e arrega?ava a palpebra do olho esquerdo mostrando o interior inflammado com uns pontos amarellos, purulentos, indicativos de insufficiente lavagem, um tregeito de garotice.--E continuava:--Quem lhe d?ra dois pontap?s, n'elle a mais n'ella!--e muito rubro de colera dava pancadaria nas pedras, nas raizes nodosas dos castanheiros, e mettia grande terror no animo do Sime?o quando faiscava lume nos calhaos com a percuss?o do machado.

Esta situa??o promettia acabar pela fuga prudente do pai de Martha, se o estudante de Villalva n?o assomasse ao fundo do castanhal com uma matilha de coelheiras que ladravam a um porco muito erri?ado, que as esperava com o focinho de esguelha, bufando e grunhindo. O ca?ador chamava os c?es, assobiava, fazia uma bulha convencional para que a Martha o ouvisse.

Elle n?o tinha visto o pedreiro; os c?es ? que o viram e deixaram o porco destemido para atacarem o homem, com uma velha birra que lhe tinham. O Zeferino, n'outra occasi?o, segundo o seu costume, desprezaria a arremettida da matilha; mas, n'aquella conjunctura de odio ao ca?ador, esperou a canzoada com o machado em riste, empunhava o cabo com as m?os cabelludas, e fazia, com o corpo inclinado, avan?os provocadores. Jos? Dias chamava os c?es obedientes; mas o Zeferino, muito azedo, engelhando na cara uns tregeitos de basofia, dizia sarcastico:

--Deixe-os vir, deixe-os vir, que o primeiro que chega fa?o-lhe saltar os miolos ? cara de voc?.

Que se accommodasse, conciliava pacificamente o estudante--que os c?es n?o tinham outra falla. E o pedreiro insistente, muito arrogante:--que venham para c?, e mais o dono, o ca?ador de borra! e dizia palavradas canalhas, muito damnado por que vira apparecer a Martha na varanda, a fazer meia com a cesta do novello no bra?o.

--? snr. Zeferino, falle bem, ponha c?bro na lingua--advertiu o Jos? Dias com uma serenidade de m?o agouro--quando eu lhe ladrar ent?o se far? com o machado para mim. Os c?es ladraram-lhe, eu chamei-os, que mais quer voc?, homem? Siga o seu caminho.

--O meu caminho? o meu caminho ? este--disse batendo com o machado na terra.--Quer voc? mandar-me embora d'aqui? Ora n?o seja tolo.

A presen?a da m??a enfurecia-o; contra o seu costume, sentia-se valente. O amor, como um vinho indigesto, dava-lhe a coragem interina dos bebedos, e berrava:

--Se ? homem, venha para c?! Voc? manda-me sahir d'aqui, seu peda?o d'asno?

E o estudante, j? amarello:

--Eu n?o o mando sahir d'ahi, nem lhe consinto que me chame asno. Olhe que eu largo a espingarda, tiro-lhe das unhas o machado e dou-lhe com elle.

--? alma do diabo!--exclamou o pedreiro crescendo para o ca?ador.

N'isto, um dos c?es, atravessado de c?o de gado e cadella coelheira, que aprend?ra a morder nas occasi?es rezoaveis, atirou-se-lhe ao assento das cal?as de estopa e puxou at? lhe descobrir a epiderme da nadega esquerda.

O pedreiro floreava debalde o machado; os golpes cortavam o ar, e nem de leve apanhavam o c?o, que dava pulos de esconso, atacando-o pela nadega direita. A restante matilha fraternis?ra com o outro e juntavam os focinhos num complexo de dentu?as minacissimas com os olhos sanguineos cravados nos movimentos do machado. Jos? Dias, no entanto, espancava a cain?ada, e Martha n?o sabia se havia de descer para ajudar o pai a accommodar a bulha, ou se havia de cahir na varanda a rir-se. Ella sentia-se envergonhada do espectaculo que exhibia a cal?a esfarrapada; mas n?o havia pudor que resistisse ?quillo. O pedreiro sabia que o c?o lhe chegara um pouco ? cal?a; mas, no calor da lucta, n?o sentira esfriar-se-lhe a pelle descoberta, nem se lembrou que andava sem ceroulas. Depois, como sentisse uma frescura extraordinaria na cutis, exposta ao contacto da atmosphera, levou a m?o conscienciosamente ao sitio, e achou em si aquelle specimen obsoleto do Ad?o primitivamente innocente. No entanto, Martha, n?o podendo j? comsigo, entalada de riso, fugira da varanda e atir?ra-se de bru?os sobre a cama, a rebolar-se, a espernear como se tivesse uma colica. O estudante retirou-se assobiando ? matilha ainda refilada ?s nadegas do homem. O Sime?o co?ava-se com as dez unhas e dizia velhacamente commovido:

--M?tta-se ahi na c?rte da egua que eu vou-lhe buscar umas cal?as, seu Zeferino, ou d?-se-lhe ahi quatro pontos p'ra remediar. D? c? as cal?as, e n?o se afflija...

O pedreiro respondeu-lhe porcamente e de modo t?o trivial, que o outro lhe replicou:

--V? voc?!

Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page

Back to top Use Dark Theme