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Munafa ebook

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Read Ebook: O Cortiço by Azevedo Alu Sio

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Ebook has 2236 lines and 80917 words, and 45 pages

Oh! como lhe doia agora o que acabava de praticar na cegueira da sua sensualidade.

--Que cabe?ada!... dizia elle agitado. Que formidavel cabe?ada!...

No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silencio, como se nada de extraordinario houvera entre elles acontecido na vespera. Dir-se ia at? que, depois d'aquella occurrencia, o Miranda sentia crescer o seu odio contra a esposa. E, ? noite d'esse mesmo dia, quando se achou sozinho na sua cama estreita, jurou mil vezes aos seus brios nunca mais, nunca mais, praticar semelhante loucura.

Mas, d'ahi a um mez, o pobre homem, acommettido de um novo accesso de luxuria, voltou ao quarto da mulher.

Estella recebeu-o d'esta vez como da primeira, fingindo que n?o acordava; na occasi?o, por?m, em que elle se apoderava d'ella febrilmente, a leviana, sem se poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo sopeava. O pobre diabo desnorteou, dev?ras escandalisado, soerguendo-se, brusco, n'um estremunhamento de somnambulo acordado com violencia.

A mulher percebeu a situa??o e n?o lhe deu tempo para fugir; passou-lhe rapido as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos.

N?o se fallaram.

Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim t?o violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos bra?os de uma amante apaixonada; descobrio n'ella o capitoso encanto com que nos embebedam as cortez?s amestradas na sciencia do gozo venereo. Descobrio-lhe no cheiro da pelle e no cheiro dos cabellos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro halito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delirio, com verdadeira satisfa??o de animal no cio.

E ella tambem, ella tambem gozou, estimulada por aquella circumstancia picante do resentimento que os desunia; gozou a deshonestidade d'aquelle acto que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo d'aquelle seu inimigo odiado, achando-o tambem agora, como homem, melhor que nunca, suffocando-o nos seus abra?os n?s, mettendo-lhe pela bocca a lingua humida e em braza. Depois, n'um arranco de corpo inteiro, com um solu?o guttural e estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se n'um abandono de pernas e bra?os abertos, a cabe?a para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda ella agonisante, como se a tivessem crucificado na cama.

A partir d'essa noite, da qual s? pela manh? o Miranda se retirou do quarto da mulher, estabeleceu-se entre elles o habito de uma felicidade sexual, t?o completa como ainda n?o a tinham desfrutado, posto que no intimo de cada um persistisse contra o outro a mesma repugnancia moral em nada enfraquecida.

Durante dez annos viveram muito bem casados; agora, por?m, tanto tempo depois da primeira infidelidade conjugal, e agora que o negociante j? n?o era acommettido t?o frequentemente por aquellas crises que o arrojavam fora d'horas ao dormitorio de Dona Estella; agora, eis que a leviana parecia disposta a reincidir na culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na occasi?o em que estes subiam para almo?ar ou jantar.

Foi por isso que o Miranda comprou o predio vizinho a Jo?o Rom?o.

A casa era boa; seu unico defeito estava na escassez do quintal; mas para isso havia remedio: com muito pouco compravam-se umas dez bra?as d'aquelle terreno do fundo, que ia at? ? pedreira, e mais uns dez ou quinze palmos do lado em que ficava a venda.

Miranda foi logo entender-se com o Rom?o e propoz-lhe negocio. O taverneiro recussou formalmente.

Miranda insistio.

--O senhor perde seu tempo e seu latim! retrucou o amigo de Bertoleza. Nem s? n?o cedo uma pollegada do meu terreno, como ainda lhe compro, sem o quizer vender, aquelle peda?o que lhe fica ao fundo da casa!

--O quintal?

--? exacto.

--Pois voc? quer que eu fique sem chacara, sem jardim, sem nada?

--Para mim era de vantagem...

--Ora, deixe-se d'isso, homem, e diga l? quanto quer pelo que lhe propuz.

--J? disse o que tinha a dizer.

--Ceda-me ent?o ao menos as dez bra?as do fundo.

--Nem meio palmo!

--Isso ? maldade de sua parte, sabe? Eu, se fa?o tamanho empenho, ? pela minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espa?o para alargar-se.

--E eu n?o cedo, porque preciso do meu terreno!

--Ora qual! Que diabo p?de l? voc? fazer ali? Uma porcaria de um peda?o de terreno quasi grudado ao morro e aos fundos de minha casa! quando voc?, ali?s, disp?e de tanto espa?o ainda!

--Hei de lhe mostrar se tenho ou n?o o que fazer ali!

--? que voc? ? teimoso! Olhe, se me cedesse as dez bra?as do fundo, a sua parte ficaria cortada em linha recta at? ? pedreira, e escusava eu de ficar com uma aba de terreno alheio a metter-se pelo meu. Quer saber? n?o amuro o quintal sem voc? decidir-se!

--Ent?o ficar? com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha a dizer j? disse!

--Mas, homem de Deus, que diabo! pense um pouco! Voc? ali n?o p?de construir nada! Ou pensar? que lhe deixarei abrir janellas sobre o meu quintal?...

--N?o preciso abrir janellas sobre o quintal de ninguem!

--Nem t?o pouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janellas da esquerda!

--N?o preciso levantar parede d'esse lado...

--Ent?o que diabo vai voc? fazer de todo este terreno?...

--Ah! isso agora ? c? comigo!... O que f?r soar?!

--Pois creia que se arrepende de n?o me ceder o terreno!...

--Se me arrepender, paciencia! S? lhe digo ? que muito mal se sahir? quem quizer metter-se c? com a minha vida!

--Passe bem!

--Adeus!

Travou-se ent?o uma lucta renhida e surda entre o portuguez negociante de fazendas por atacado e o portuguez negociante de seccos e molhados. Aquelle n?o se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcan?ado o peda?o de terreno que o separava do morro; e o outro, por seu lado, n?o perdia a esperan?a de apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou tres bra?as aos fundos da casa; parte esta que, conforme os seus calculos, valeria oiro, uma vez realizado o grande projecto que ultimamente o trazia preoccupado--a crea??o de uma estalagem em ponto enorme, uma estalagem monstro, sem exemplo, destinada a matar toda aquella miu?alha de corti?os que alastravam por Botafogo.

Era este o seu ideal. Havia muito que Jo?o Rom?o vivia exclusivamente para essa id?a; sonhava com ella todas as noites; comparecia a todos os leil?es de materiaes de construc??o; arrematava madeiramentos j? servidos; comprava telha em segunda m?o; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo depositado no seu extenso ch?o vasio, cujo aspecto tomava em breve o caracter estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade de objectos que ali se apinhavam accumulados: taboas e sarrafos, troncos d'arvore, mastros de navio, caibros, restos de carro?as, chamin?s de barro e de ferro, fog?es desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos os feitios, barricas de cimento, montes de ar?a e terra vermelha, aglomera??es de telhas velhas, escadas partidas, depositos de cal, o diabo emfim; ao que elle, que sabia perfeitamente como essas coisas se furtavam, resguardava, soltando ? noite um formidavel c?o de fila.

--? fazer o muro! dizia Jo?o Rom?o, sacudindo os hombros.

--N?o fa?o! replicava o outro. Se elle ? quest?o de capricho, eu tambem tenho capricho!

Em compensa??o, n?o cahia no quintal do Miranda gallinha ou frango, fugidos do cercado do vendeiro, que n?o levasse immediato sumi?o. Jo?o Rom?o protestava contra o roubo em termos violentos, jurando vingan?as terriveis, fallando em dar tiros.

--Pois ? fazer um muro no gallinheiro! repontava o marido de Estella.

D'ahi a alguns mezes, Jo?o Rom?o, depois de tentar um derradeiro esfor?o para conseguir algumas bra?as do quintal do vizinho, resolveu principiar as obras da estalagem.

--Deixa estar, conversava elle na cama com a Bertoleza; deixa estar que ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se ? que n?o lhe entre pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, n?o duas bra?as, mas seis, oito, todo o quintal e at? o proprio sobrado talvez!

E dizia isto com uma convic??o de quem tudo p?de e tudo espera da sua perseveran?a, do seu esfor?o inquebrantavel e da fecundidade prodigiosa do seu dinheiro, dinheiro que s? lhe sahia das unhas para voltar multiplicado.

Desde que a febre de possuir se apoderou d'elle totalmente, todos os seus actos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniario. S? tinha uma preoccupa??o: augmentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os peiores legumes, aquelles que, por m?os, ninguem compraria; as suas gallinhas produziam muito e elle n?o comia um ovo, do que no emtanto gostava immenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquillo j? n?o era ambi??o, era uma molestia nervosa, uma loucura, um desespero de accumular, de reduzir tudo a moeda. E seu typo baixote, socado, de cabellos ? escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda ?s hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobi?a, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquillo de que elle n?o podia apoderar-se logo com as unhas.

Entretanto, a rua l? f?ra povoava-se de um modo admiravel. Construia-se mal, por?m muito; surgiam chalets e casinhas da noite para o dia; subiam os alugueis; as propriedades dobravam de valor. Mont?ra-se uma fabrica de massas italianas e outra de v?las, e os trabalhadores passavam de manh? e ?s Ave-Marias, e a maior parte d'elles ia comer ? casa de pasto que Jo?o Rom?o arranj?ra aos fundos da sua venda. Abriram-se novas tavernas; nenhuma, por?m, conseguia ser t?o afreguezada como a d'elle. Nunca o seu negocio fora t?o bem, nunca o finorio vend?ra tanto; vendia mais agora, muito mais, que nos annos anteriores. Teve at? de admittir caixeiros. As mercadorias n?o lhe paravam nas prateleiras; o balc?o estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E o dinheiro a pingar, vintem por vintem, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a burra, aos cincoenta e aos cem mil r?is, e da burra para o banco, aos contos e aos contos.

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