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Read Ebook: The romance of my childhood and youth by Adam Juliette

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Ebook has 2571 lines and 76704 words, and 52 pages

OS FIDALGOS DA CASA MOURISCA

OS FIDALGOS

CASA MOURISCA

CHRONICA DA ALDEIA

POR

TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO Rua Ferreira Borges, 31

OS FIDALGOS DA CASA MOURISCA

A tradi??o popular em Portugal, nos assumptos de historia patria, n?o se remonta al?m do periodo da domina??o arabe nas Hespanhas.

Pouco ou nada sabe o povo de celtiberos, de romanos e de wisigodos. ?, por?m, entre elle no??o corrente que, em outros tempos, f?ra este paiz habitado por mouros, e que s? ? for?a de cutiladas e de botes de lan?a os expulsaram os christ?os para as terras da Mourama. Os vultos heroicos de reis e cavalleiros nossos, que se assignalaram nas luctas d'essa ?poca, ainda n?o desappareceram das chronicas oraes, onde vivem illuminados por a mesma poetica luz das xacaras e dos romances nacionaes; e hoje ainda, nas dansas e jogos que se celebram nos logares publicos das villas e aldeias, por occasi?o das principaes solemnidades do anno, apraz-se a memoria do povo de recordar os feitos d'aquelles tempos historicos por meio de simulados combates de mouros e christ?os.

Nos contos narrados em volta da lareira, onde nas longas noites de ser?o se reune a familia rustica, ou ?s rapidas horas d'uma noite de estio, na soleira da porta, ao auditorio attento que segue com os olhos a lua em silenciosa carreira por um c?o sem estrellas, avulta uma crea??o extremamente sympathica, a das mouras encantadas, princezas formosissimas que ficaram d'esses remotos tempos na peninsula, em pa?os invisiveis, ? espera de quem lhes venha quebrar o captiveiro, soltando a palavra magica.

Falla-se em diversos pontos das nossas provincias, com a seriedade que ? propria a uma arreigada cren?a, de thesouros enterrados, que os mouros por ahi deixaram, na esperan?a de voltarem um dia a resgatal-os, e j? n?o tem sido poucas as escava??es emprehendidas no ?vido intuito de os descobrir.

Esta mesma no??o historica do povo ? a que d? logar a um outro frequente facto. Quando, no centro de qualquer aldeia, se eleva um palacio, um solar de familia, distincto dos edificios communs por uma qualquer particularidade architectonica mais saliente, ouvireis no sitio designal-o por o nome de Casa Mourisca, e, se n?o se guarda ahi memoria da sua funda??o, a chronica lhe assignar? infallivelmente como data a lendaria e mysteriosa ?poca dos mouros.

Era o que succedia com o solar dos senhores Negr?es de Villar de Corvos, que, em tres leguas em redondo, eram por isso conhecidos pelo nome dos Fidalgos da Casa Mourisca.

N?o se persuada o leitor de que possuia aquelle solar fei??o pronunciadamente arabe, que justificasse a denomina??o popular, ou que m?os agarenas houvessem de feito cimentado os alicerces da casa nobre denominada assim. ?s pequenas torres quadradas, que se erguiam, coroadas de ameias, nos quatro angulos do edificio, ao desenho ogival das portas e janellas, ?s estreitas setteiras abertas nos muros, e finalmente a certo ar de castello feudal, que um dos antepassados d'esta fidalga familia tentou dar aos pa?os de sua residencia senhoril, dev?ra ella a qualifica??o de mourisca, que persistira, apesar dos protestos da arte. Nenhum estylo architectonico f?ra na construc??o escrupulosamente respeitado; o gosto e capricho do proprietario presidiram mais que tudo ? tra?a e execu??o da obra; n?o ha pois exigencias artisticas que me imponham a obriga??o de descrevel-a miudamente.

Diga-se por?m a verdade; fossem quaes fossem os defeitos de architectura, as incongruencias e absurdos d'aquella fabrica grandiosa, quem, ao dobrar a ultima curva da estrada irregular por onde se vinha ? aldeia, via surgir de repente do seio de um arvoredo secular aquelle vulto escuro e sombrio, contrastando com os brancos e risonhos casaes disseminados por entre a verdura das collinas proximas, mal podia reter uma exclama??o de surpreza e involuntariamente parava a contemplal-o.

Ou o sol no poente lhe doirasse a fachada de granito, ou as ameias, que o coroavam, se desenhassem como negra dentadura no c?o azul, alumiado pela claridade matinal, era sempre melancolico e triste o aspecto d'aquella residencia, sempre magestoso e severo.

Reparando mais attentamente, outros motivos concorriam ainda para fortalecer esta primeira impress?o. O tempo n?o se limit?ra a colorir o velho solar com as tintas negras da sua palheta; derroc?ra-lhe aqui e al?m uma ameia ou um balaustre do eirado, mutil?ra-lhe a cruz da capella, desconjunct?ra-lhe a cantaria em extensos lan?os de muro, abrindo-lhe intersticios, d'onde irrompia uma inutil vegeta??o parasita: e esta permanencia de estragos, trahindo a incuria ou a insufficiencia de meios do proprietario actual, iniciava no espirito do observador uma serie de melancolicas reflex?es.

E se o movesse a curiosidade a indagar na visinhan?a informa??es sobre a familia que alli habitava, obtel-as-ia proprias a corroborar-lhe os seus primeiros e espontaneos juizos.

Os chamados Fidalgos da Casa Mourisca eram actualmente tres. D. Luiz, o pae, velho sexagenario, grave, severo, e taciturno; Jorge e Mauricio, os seus dois filhos, robustos e esbeltos rapazes: o mais velho dos quaes, Jorge, ainda n?o complet?ra vinte e tres annos.

A historia d'aquella casa era a historia sabida dos ricos fidalgos da provincia, que, orgulhosos e imprevidentes, deixaram, a pouco e pouco, embara?ar as propriedades com hypothecas e contractos ruinosos, desfallecer a cultura nos campos, empobrecer os celleiros, despovoar os curraes, exhaurir a seiva da terra, transformar longas varzeas em charnecas, e desmoronarem-se as paredes das residencias e das granjas e os muros de circunscrip??o das quintas.

Filho segundo de uma das mais nobres familias da provincia, D. Luiz f?ra pelos paes destinado para a carreira diplomatica, na qual entrou apadrinhado e favorecido por os mais altos personagens da c?rte.

Nas primeiras capitaes da Europa, em cujas embaixadas serviu, obteve o fidalgo provinciano um grau de illustra??o e de tracto do mundo, um verniz social, que nunca adquiriria se, como tantos, de mo?o se creasse para morgado.

Quando, por morte do primogenito, veio a succeder nos vinculos, D. Luiz podia considerar-se, gra?as ? occupa??o dos seus primeiros annos de mocidade, como o mais instruido e civilisado proprietario da sua provincia; e como tal effectivamente foi sempre havido pelos outros, que o tractavam com uma deferencia excepcional.

Ainda depois da morte do irm?o, D. Luiz, costumado ao viver da grande sociedade e ? esplendida elegancia das c?rtes estrangeiras, n?o abandonou a carreira que encet?ra. Secretario de embaixada em Vienna, casou alli com a filha de um fidalgo portuguez, que ent?o residia n'essa corte, encarregado de negocios politicos.

Ao manifestarem-se em Portugal os primeiros symptomas da profunda revolu??o, que devia alterar a face social do paiz, D. Luiz mostrou-se logo hostil ao movimento nascente, e abandonando ent?o o seu logar diplomatico, voltou ao reino para representar um papel importante nas scenas politicas d'essa ?poca.

Ahi tiveram origem grande parte dos desgostos domesticos, que lhe amarguraram o resto da vida.

Os parentes de sua esposa abra?aram a causa liberal.

D. Luiz, com toda a intolerancia partidaria, rompeu completamente as rela??es com elles, ferindo assim no intimo os affectos mais sanctos da pobre senhora, que sentia esmagar-se-lhe o cora??o entre as fortes e irreconciliaveis paix?es dos que ella com igual affecto amava.

O rancor faccioso foi ainda mais longe em D. Luiz. Impelliu-o ? persegui??o.

O irm?o mais novo da esposa, obedecendo ao enthusiasmo de rapaz e ? vehemencia de uma convic??o sincera, sustent?ra com a penna, e mais tarde com a espada, a causa da ideia nova, que tanto namorava os animos generosos e juvenis.

Sobre a bella e arrojada cabe?a d'aquelle adolescente pesaram as sombras das suspeitas e das vingan?as politicas; e D. Luiz, cego pela paix?o, n?o duvidou em fazer-se instrumento d'ellas.

Este era o irm?o querido da esposa, que o fidalgo estremecia; mas nem as supplicas, nem as lagrimas d'ella puderam abrandar a for?a d'aquelle rancor.

O imprudente mo?o viu-se perseguido, pr?so, processado e em quasi imminente risco de expiar, como tantos, no supplicio o crime de pensar livremente. Conseguindo, quasi por milagre, escapar ? furia dos seus perseguidores, emigrou para voltar mais tarde n'essa memoranda expedi??o, que principiou em Portugal a heroica iliada da nossa emancipa??o politica.

Guerreiro t?o fogoso, como o f?ra publicista, o pobre rapaz n?o assistiu por?m ? victoria da sua causa. Ao raiar da aurora liberal, por que tanto anhelava, cahiu em uma das ultimas e mais disputadas refregas d'aquella sanguinolenta lucta, crivado de balas inimigas, sendo a sua ultima voz um grito de enthusiasmo pela grande ideia, em cujo martyrologio se ia inscrever o seu nome.

A morte d'este enthusiasta levou o lucto e a tristeza ao solar de D. Luiz. O cora??o amoravel e extremoso da infeliz senhora recebeu ent?o um golpe decisivo; das consequencias d'aquella d?r nunca mais podia ella convalescer. A sua vida foi depois toda para luto e para lagrimas.

Fez-se a paz, implantou-se no paiz a arvore da liberdade; D. Luiz deixou ent?o a vida da c?rte e veio encerrar no canto da provincia os seus despeitos, os seus odios e os seus desalentos. Trouxe comsigo um enxame de misanthropos, a quem o sol da liberdade igualmente incommodava, e que tinham resolvido pedir ? natureza conforto contra os suppostos delictos da humanidade.

O solar do fidalgo transformou-se pois em asylo de muitos correligionarios, como elle desgostosos e irreconciliaveis com a nova organisa??o social.

Instituiu-se alli uma pequena c?rte na aldeia, uma especie de assembleia ou conventiculo politico, que n?o poucas vezes attrahiu as vistas dos liberaes desconfiados e as amea?as dos mais insoffridos. Havia alli homens de todas as condi??es, e alguns de illustra??o e sciencia.

A hospitalidade do fidalgo era magnifica. D. Luiz mostrava ignorar, ou n?o querer saber, qual o pre?o por que ella lhe ficava. Indifferente a tudo, dir-se-ia s?l-o tambem ? ruina da sua propria casa, que apressava assim.

A victoria da causa contraria; a morte, em curtos intervallos, de tres filhos, que parecia cahirem victimas de uma senten?a fatal; o receio pela vida dos outros; a tristeza e doen?a progressivas da esposa, a quem aquelles odios e luctas tinham despeda?ado o cora??o; ?s vezes uma vaga consciencia da sua situa??o precaria, e por ventura ainda remorsos pelas violencias, a que os odios politicos o impelliram, quebrantaram o caracter, outr'ora varonil, d'aquelle homem, que desde ent?o come?ou a mostrar-se taciturno e descoro?oado. A prova evidente de que alguns remorsos tambem lhe torturavam o espirito f?ra a insolita generosidade, com que recebeu e gasalhou permanentemente em sua casa um pobre soldado do exercito liberal, meio mutilado pela guerra d'esses tempos, e que tinha sido o fiel camarada do infeliz mancebo, contra quem tanto se encarni??ra o odio do implacavel realista.

Viera o soldado entregar ? esposa do fidalgo uma medalha, ultima lembran?a do irm?o que lh'a envi?ra, quando j? agonisante no campo do combate. Havia-a confiado ao camarada para que a entregasse ?quella, a quem tanto queria.

D. Luiz n?o s? permittiu que o soldado fizesse a entrega em m?o propria da esposa, mas deixou-o com ella em larga conferencia, n?o querendo que a sua presen?a a reprimisse na ancia natural de saber as menores particularidades da vida e da morte do infeliz, de quem o emissario f?ra companheiro inseparavel. N?o se limitou a isso a tolerancia do fidalgo. Viu, sem a menor reflex?o, que o mensageiro se demorava alguns dias na Casa Mourisca, e n?o opp?z resistencia alguma ao pedido, que a esposa mais tarde lhe fez para que o deixasse ficar alli, no logar do hortel?o que fallec?ra.

Este facto insignificante foi de n?o pequena influencia nos destinos d'aquella familia.

Os filhos de D. Luiz, creados no meio d'essa c?rte de provincia, cresciam sob influencias que actuavam d'uma maneira contradictoria sobre os seus caracteres infantis.

N?o lhes faltavam mestres que os instruissem, que muitos eram os habilitados para isso nas salas do fidalgo, refugio de tantos illustres descontentes. Gra?as a estas especiaes condi??es, puderam os dois rapazes receber uma educa??o, difficil de conseguir em um canto t?o retirado da provincia, como aquelle era.

Mas, ao lado da li??o dos mestres, que, juntamente com a sciencia, se esfor?avam por imbuir-lhes os seus principios politicos, aos quaes se atinham como a artigos de f?, havia uma outra li??o mais obscura, mas por ventura mais efficaz. Era a li??o da m?e e a do veterano.

A esposa de D. Luiz era uma senhora de esmeradissima educa??o e de um profundo bom senso. Amava o marido, mas via com pezar os excessos, a que o impelliam as suas opini?es politicas. Educada no seio de uma familia liberal, possuia sentimentos favoraveis ?s ideias novas; mas sabia guardal-os no cora??o, para n?o despertar conflictos na familia.

Por?m, no tracto intimo entre m?e e filhos, trahia-se muita vez essa prudente discri??o, e as fidalgas crian?as iam recebendo a doutrina, de que os outros lhes blasphemavam como de heresias, e naturalmente, seduzidas pela origem d'onde ella lhes vinha, abriam-lhe de melhor vontade o cora??o, do que aos preceitos austeros e um pouco pedantescos dos mestres.

Demais, ouviam tantas vezes a m?e fallar-lhes do irm?o que perd?ra, dos seus sentimentos generosos, do seu nobre caracter e da sua dedica??o heroica a bem da causa liberal, que elles, e o mais velho sobre tudo, costumaram-se a venerar a memoria do tio, como a de um heroe e a de um martyr e a v?l-o aureolado de um verdadeiro prestigio lendario.

Para isto por?m concorreu mais que outrem o hortel?o.

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