Use Dark Theme
bell notificationshomepageloginedit profile

Munafa ebook

Munafa ebook

Read Ebook: The romance of my childhood and youth by Adam Juliette

More about this book

Font size:

Background color:

Text color:

Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page

Ebook has 2571 lines and 76704 words, and 52 pages

Para isto por?m concorreu mais que outrem o hortel?o.

O velho soldado era uma chronica viva das batalhas e fa?anhas d'aquelles tempos historicos e um panegyrista ardente do seu pobre official, cujo ultimo suspiro recolh?ra.

As crian?as sentiam-se instinctivamente attrahidas para a companhia do velho, em cujas narra??es pintorescas e vivamente coloridas achavam um encanto irresistivel. Feria-lhes fundo a curiosidade a maneira por que elle fallava dos trabalhos da emigra??o, dos episodios do cerco do Porto, da fome, da peste e da guerra, triplice calamidade que conhec?ra de perto, das batalhas em que havia entrado, da bravura do seu amo, e finalmente do Imperador, por quem o mutilado veterano professava um enthusiasmo quasi supersticioso, e a cujo vulto a sua narrativa imaginosa dava um aspecto epico e sobrenatural.

As crian?as n?o se fartavam de interrogar aquella testemunha presencial de tantos feitos heroicos.

E assim eram neutralisadas as doutrinas dos pedagogos eruditos, encarregados da educa??o dos filhos de D. Luiz, e estes iam crescendo affei?oados aos principios liberaes, que amavam de instincto, antes de os amarem de reflex?o.

Mas dias de maior prova??o estavam reservados para esta familia.

A munificencia que o senhor da Casa Mourisca mantivera no voluntario desterro, a que se condemnou, obrig?ra-o a enormes e perigosos sacrificios.

D. Luiz nunca propriamente se occup?ra da gerencia dos seus bens. Fiel aos habitos aristocraticos dos seus maiores, deix?ra desde muito a procuradores todos os cuidados de administra??o, e de quando em quando recebia d'elles a noticia de que a sua casa se estava perdendo, sem que se lembrasse de perguntar a si proprio se n?o seria possivel opp?r um obstaculo ?quella ruina.

O padre Januario, ou frei Januario dos Anjos, velho egresso, homem de letras gordas, que se estabelec?ra commodamente n'aquella acastellada residencia, como em casa sua, era um d'esses procuradores.

Fa?a-se justi?a ao padre, que n?o era de m? f?, nem em proveito proprio, que elle apressava, com m?o poderosa, a decadencia de D. Luiz. Mas, homem de curtas faculdades e de nenhum expediente financeiro, se obtinha capitaes para o seu constituinte, nas crises mais apertadas, era sempre sob condi??es de tal natureza, que deixava de cada vez mais onerada a propriedade e mais irremediavel o triste futuro d'ella. Succedeu pois o que era de esperar. Dispersou-se a c?rte de D. Luiz. Por muito que fizessem os administradores da casa para a manter no costumado esplendor, c?do principiaram a transparecer os signaes da declina??o. Foi o aviso para a debandada. Uns porque delicadamente comprehenderam que a sua permanencia concorreria para augmentar as difficuldades, com que o fidalgo j? luctava; outros, porque aspiravam melhores auras, longe d'alli, em solares menos estremecidos pelo vaivem da adversidade; ? certo que todos se foram retirando, a um por um, e deixaram a familia s?.

Augmentou com este isolamento a taciturnidade do fidalgo.

Depois veio a doen?a e a morte da esposa, d'aquella que lhe tinha sido t?o fiel amiga, que, para lhe poupar desgostos, at? escondia as lagrimas, que elle lhe fazia verter; veio essa nova d?r atribular-lhe ainda mais a existencia. E ainda n?o haviam acabado as prova??es! No fundo do calice estavam ainda depositadas as gotas mais amargas.

D. Luiz tinha por esses tempos uma filha, mimoso legado da esposa, cuja miss?o consoladora continuava no mundo. Queria-lhe muito o pae! Se n?o havia de querer! O cora??o ?rido d'aquelle velho e o tenro cora??o d'aquella crian?a procuravam-se, como para um pelo outro se completarem.

O velho fidalgo, concentrado e quasi rispido para com os outros filhos, se alguma vez teve nos labios sorrisos desanuviados e sinceros, foi na presen?a da sua Beatriz. Aquelle desgra?ado cora??o, vazio de affectos, queimado de odios e de paix?es esterilisadoras, sentia um grato refrigerio em deixar-se penetrar do suave influxo das caricias da crian?a, que beijava as faces rugosas do pae e lhe brincava com os cabellos prateados; e muitas vezes, n'esses momentos, lagrimas de desafogo dissipavam a cerra??o que ia na alma d'aquelle homem, que com tanta for?a sabia odiar.

E n?o era s? o pae que experimentava essa influencia.

Jorge, que de pequeno f?ra pensativo e serio, sentia-se tomar por a bondade e ternura de Beatriz. Crian?a ainda, tinha ella, quando a s?s com o irm?o, um olhar penetrante e um gesto grave como o d'elle, um espirito para communicar ? vontade com o seu. Ella parecia comprehender o alcance do auxilio que poderia receber um dia d'aquelle rapaz sisudo, que a fitava, e elle sentia-se engrandecer aos proprios olhos, lembrando-se de que seria sua miss?o na vida proteger aquelle anjo.

Mauricio, genio mais impetuoso e impaciente, dobrava tambem a vontade a um aceno da fragil e delicada creatura, em quem um estouvamento seu desafiava lagrimas. E estas lagrimas eram a unica repress?o que o continham nos desvarios.

Pois at? n'esta filha feriu o Senhor o pobre anci?o.

Crian?a mimosa, colheu-a um sopro da morte, ainda com o sorriso nos labios, e prostrou-a exanime no tumulo.

Fez-se ent?o dev?ras escuro no espirito do pae.

Quando aquella pequena fada domestica desappareceu, como uma vis?o vaporosa em contos de magia, foi como que se todos ficassem em trevas. A vida era t?o outra! O ente que absorvia os instantes d'aquelles tres homens, a quem todos tres tributavam os seus mais puros affectos e os seus pensamentos mais constantes, desapparec?ra, e elles olhavam-se assustados, meio loucos, como se de subito se lhes tivesse apagado a luz que os alumiava; sentiam a indecis?o do homem, a quem no meio da estrada fulmina inesperada cegueira.

Passada a violencia da primeira d?r, em todos ficou a saudade, negra e concentrada em D. Luiz, melancolica em Jorge, expansiva e vehemente em Mauricio; e para todos o nome de Beatriz, a recorda??o dos seus gestos, das suas palavras, era um talisman, cuja efficacia nunca se desmentia. A alma d'aquelle anjo assistia ainda ? familia, que o chorava, e ? sua mysteriosa direc??o obedeciam todos, sem o perceberem.

Morta aos dezeseis annos, Beatriz vivia ainda nos logares que habitava.

Ha entes assim, cuja influencia posthuma lhes d? uma quasi immortalidade, ? maneira da luz sideral, que continua a scintillar para n?s, depois de aniquilado o f?co que a emittia.

O padre Januario tornou-se desde ent?o a creatura indispensavel, e a companhia exclusiva de D. Luiz, que via n'elle o unico representante da sua antiga c?rte.

Acerrimo partidario do regimen absoluto, apesar de lhe n?o ser possivel enfeixar dois argumentos serios em defeza d'elle, o padre Januario passava a vida aproveitando os mais ridiculos ensejos para premissas dos seus corollarios anti-liberaes, artificio com que lisongeava as paix?es do seu illustre amo e patrono, e mantinha n'elle o fogo sagrado.

O padre achava-se bem n'aquella vida monotona, que exercia sobre si os mais notaveis effeitos analepticos. Podia dizer-se que elle dividia alli o tempo entre duas occupa??es exclusivas: comer e esperar com impaciencia as horas da comida.

Uma unica circumstancia assombrava os dias do padre. Era a presen?a na Casa Mourisca do hortel?o, em quem fallamos, e que mantinha com elle uma aberta hostilidade. Frei Januario exasperava-se sempre que o ouvia fallar no Imperador e no Cerco e nos Voluntarios da Rainha e na Carta, com o enthusiasmo e a emphase de um soldado d'aquelles tempos. Por vezes rompiam ambos em scenas violentas; por vezes o capell?o ia aconselhar ao fidalgo a demiss?o d'aquelle homem, que amea?ava infectar de liberalismo a familia inteira.

D. Luiz por?m, apesar de nunca fallar com o hortel?o, n?o attendia n'estas reclama??es o padre. Conservando no seu servi?o o veterano, satisfazia a um pedido da esposa, e n?o teria coragem para fazer o contrario. Assim perpetuavam-se os conflictos entre os dois, porque nem o procurador supportava as rudes franquezas do soldado, nem este os remoques encapotados do procurador.

Tal era a situa??o da familia da Casa Mourisca na ?poca em que vae procural-a a nossa narra??o.

J? se v? qu?o mal assegurado andava o futuro dos dois jovens filhos de D. Luiz. A educa??o que elles haviam recebido n?o tend?ra a fim algum pr?tico.

D. Luiz n?o podia soffrer a ideia de dar a seus filhos uma profiss?o. A nobre carreira das armas, que mais lhes conviria, estava-lhes fechada pelas ultimas evolu??es politicas. Os descendentes dos ultra-monarchicos Negr?es de Villar de Corvos n?o eram para se assalariarem em defeza dos principios e das institui??es que abalaram os velhos thronos, firmados no direito divino. Nobre era tambem a carreira ecclesiastica, que muitos dos seus antepassados haviam trilhado, apoiados no baculo episcopal; mas se D. Luiz estava persuadido de que j? n?o havia religi?o n'este territorio de antigos crentes? e se frei Januario teimava, ensinado pelo mallogro de longas preten??es ?s honras de umas meias vermelhas, que s? se adiantava nas phalanges do clero quem fosse pedreiro livre!

Assim pois os jovens descendentes do velho realista passavam o tempo cavalgando e ca?ando nas immedia??es, e fruindo em sancto ocio uma vida, cujos espinhos todos procuravam occultar-lhes. Caminhavam por estrada de rosas para um fundo precipicio, d'onde lhes desviavam as vistas.

Deve por?m dizer-se que n?o caminhavam ambos igualmente desprevenidos; porque de crian?a era diverso o caracter dos dois, e de dia para dia mais a differen?a se pronunciava.

Jorge, na infancia como na juventude, f?ra sempre grave e reflectido. Nos brinquedos tomava para si o desempenho de um papel serio. Era o pae, o mestre, o commandante, o medico, o padre, tudo aquillo que o obrigasse a um porte sisudo e a uma gravidade de homem. Adolescente, nunca as raparigas do logar lhe ouviram uma phrase atrevida; era sempre uma sauda??o affectuosa, casta e quasi paternal a que lhes dirigia, ainda quando as encontrasse a s?s nas veredas mais solitarias das devezas ou pinheiraes. Ellas habituaram-se ?quella juvenil seriedade, saudavam-n'o como a um velho, fallavam d'elle com acatamento, certas de encontrarem n'aquelle silencioso rapaz um protector na occasi?o precisa, mas nunca um namorado. E comtudo a figura esbelta de Jorge, a varonil e intelligente express?o d'aquelle rosto bem desenhado e um certo fulgor no olhar, que denunciava energia de caracter, obrigavam a desviar-se para o v?r mais de um olhar feminino, quando elle passava com um livro debaixo do bra?o ou a cavallo pelos caminhos do campo.

As pessoas da indole de Jorge impoem uma especie de estranho temor ?s mulheres, que se afastam d'ellas como de um ser mysterioso, d'onde lhes podem vir perigos desconhecidos.

Mauricio, pelo contrario, mal podia dizer de que idade encet?ra o seu primeiro amor. Com os brinquedos pueris mistur?ra j? uns arremedos de galanteio e mais o competente cortejo de arrufos e de ciumes. Desde ent?o nunca lhe andou o cora??o devoluto, ainda que tambem nunca t?o tomado e absorvido por amores, que o fizesse passar por qualquer belleza feminina, sem uma lisonja e sem um sorriso.

Era popularissimo entre as raparigas da aldeia; todas o conheciam, e elle a todas designava por os nomes. A todas n?o, que para as feias tinha uma memoria ingrata.

Al?m d'isso Jorge gastava muito do seu tempo na leitura. Era bem provida a livraria da casa. A educa??o esmerada da m?e e bom gosto litterario tinham enriquecido a bibliotheca dos melhores modelos da litteratura nacional e da estrangeira. Ahi encontraram os dois rapazes farto alimento para a sua curiosidade. Jorge lia tambem furtivamente os poucos livros, espolio do tio fallecido, os quaes o hortel?o guard?ra como reliquia, furtando-os ao auto de f? a que os condemnaria inevitavelmente a indigna??o do fidalgo e do padre. N'esses livros aprendeu Jorge a pensar, a comprehender o alcance de certas ideias e de certas institui??es, e a fazer a justi?a devida a muitos preconceitos, que lhe haviam imposto como dogmas.

A um espirito d'estes, educado em observar e reflectir, n?o podiam passar por muito tempo desapercebidos os numerosos symptomas da decadencia que apresentava a Casa Mourisca. Assim, por vezes vinha-lhe ao espirito uma secreta apprehens?o pelo seu precario futuro.

Mauricio, imagina??o mais forte, natureza mais ardente, caracter mais frivolo e voluvel, vivia a sua vida de joven fidalgo de provincia; deixava-se ir na corrente dos seus amores faceis, dos seus prazeres e das suas dissipa??es, allucinado por os sonhos e chimeras de uma fertil fantasia, e n?o profundava os olhos at? o seio obscuro das realidades. A sua leitura era exclusiva de romancistas e poetas. Imagina??o nimiamente inquieta, raz?o por indolencia inactiva, n?o via, nem quereria v?r, o espectro, que ?s vezes apparecia aos olhos do irm?o.

Uma circumstancia havia, a que mais que a outras devia Jorge a appari??o d'esse espectro, que, ? semelhan?a da sombra do rei da Dinamarca, em Hamlet, ia exercendo uma funda influencia no animo do adolescente.

Esta circumstancia n?o era s? para elle manifesta. Ao viajante, que j? suppozemos parado a contemplar o vulto denegrido da Casa Mourisca, n?o passaria ella tambem desapercebida.

Na raiz da collina fronteira ?quella, onde o solar dos fidalgos erguia as suas torres ameiadas, assentava o mais risonho e prospero casal dos arredores. Era uma completa casa rustica, conhecida por aquelles sitios pelo nome, que por excellencia se lhe dera, da Herdade.

O contraste entre a Herdade e o velho solar era perfeito.

Ella graciosa e alvejante, elle severo e sombrio; de um lado todos os signaes de actualidade, de vida, de trabalho, da industria que tudo aproveita, que n?o dorme, que n?o descan?a; a economia, a previdencia, o futuro: do outro, o passado, a tradi??o esteril, o silencio, a incuria, o desperdicio, a ruina: a cada pedra que o tempo derrubava do palacio, correspondia uma que se assentava na Herdade para alicerces de novas construc??es; aqui desmoronava-se um pavilh?o, alli levantava-se um celleiro, uma azenha, um lagar; aos velhos carvalhos, ?s heras vigorosas, aos avelludados musgos, aos lichens multicores, severas galas, com que se adornava a casa nobre, oppunha a Herdade os pomares productivos, as ondulantes searas, os prados verdes, as vinhas ferteis e proximo de casa, os canteiros de rosas e balsaminas, onde volteavam incessantes as abelhas das colmeias proximas. Nas amplas cavallari?as do palacio, onde outr'ora relinchavam duzias de cavallos das mais apuradas ra?as, ainda batiam com impaciencia no lagedo dois velhos exemplares de bom sangue, cujo sacrificio a economia n?o exigira ainda; nas mais modestas cavallari?as do casal, duas eguas robustas, promptas para o servi?o, e domaveis por uma crian?a, preparavam-se em fartas mangedouras para frequentes e longas excurs?es; e ao entardecer abriam-se os curraes a numerosas cabe?as de gado, cujos mugidos chegavam at? o alto da Casa Mourisca, onde o velho fidalgo muita vez os escutava, pensativo e melancolico.

Este contraste, que apontamos, era a circumstancia que evocava no espirito de Jorge o espectro que o entristecia.

O dono da Herdade f?ra pobre, servira como criado na casa dos fidalgos, pass?ra depois a rendeiro de um pequeno casal, mais tarde arrend?ra uma fazenda maior; chegando emfim a ser proprietario, torn?ra-se em pouco tempo possuidor de extensos bens, e era j? o chefe d'uma familia numerosa e talvez o primeiro agricultor d'aquelle circulo.

Porque prosperava a Herdade, e porque declinava o palacio? Se de t?o pouco se cheg?ra a tanto, como se podia cahir de tanto em t?o pouco?

Taes eram, em summa, as vagas reflex?es que se assenhoreavam do espirito de Jorge, quando das janellas do seu quarto, em uma das torres do palacio, ou do alto de alguma eminencia, observava a anima??o, a vida da propriedade do seu antigo criado, e voltava depois os olhos para o vulto silencioso e como adormecido do velho pa?o dos seus maiores.

Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page

Back to top Use Dark Theme