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Read Ebook: Amor de Perdição: Memorias d'uma familia by Castelo Branco Camilo
Font size: Background color: Text color: Add to tbrJar First Page Next PageEbook has 1512 lines and 47698 words, and 31 pages, que, por amor d'ella, arri?avam e empoavam as cabelleiras com um desgracioso esmero, ou cavalleavam estrepitosamente na cal?ada os seus ginetes, fingindo que os picadores da provincia n?o desconheciam as gra?as hippicas do marquez de Marialva. N?o o cuidava assim, por?m, o juiz de f?ra. O intriguista que lhe trazia o espirito em ancias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e conhecia Rita cada vez mais em fl?r, e mais enfadada no trato intimo. Nenhum exemplo da historia antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposo deforme e a esposa linda, lhe occorria. Um s? lhe mortificava a memoria, e esse, com quanto fosse da fabula, era-lhe av?sso, e vinha a ser o casamento de Venus e Vulcano. Lembravam-lhe as r?des que o ferreiro coixo fabric?ra para apanhar os deuses adulteros, e assombrava-se da paciencia d'aquelle marido. Entre si, dizia elle, que, erguido o v?o da perfidia, nem se queixaria a Jupiter, nem armaria ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luiz Botelho, que var?ra em terra o alferes, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de f?ra era entendido com muito superior intelligencia ? que revelava na comprehens?o do Digesto e das Ordena??es do Reino. Este viver de sobresaltos durou seis annos, ou mais seria. O juiz de f?ra empenh?ra os seus amigos na transferencia, e conseguiu mais do que ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou saudades em Villa Real, e duradoura memoria da sua soberba, formosura e gra?as de espirito. O marido tambem deixou anecdotas que ainda agora se repetem. Duas contarei s?mente para n?o enfadar. Acontec?ra um lavrador mandar-lhe o presenle de uma vitella, e mandar com ella a vacca para se n?o desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher ? loja a vitella e a vacca, dizendo que quem dava a filha dava a m?e. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um presente de pasteis em rica salva de prata. O juiz de f?ra repartiu os pasteis pelos meninos, e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como escarneo um presente de d?ces, que valiam dez patac?es, sendo que naturalmente os pasteis tinham vindo como ornato da bandeja. E assim ? que ainda hoje, em Villa Real, quando se d? um caso analogo de ficar alguem com o conte?do e continente, diz a gente da terra: < N?o tenho assumpto de tradi??o com que possa deter-me em miudezas da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca, e amea?ava o marido de ir com os seus cinco filhos para Lisboa, se elle n?o sahisse d'aquella intratavel terra. Parece que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo orgulhosa d'uma antiguidade, que principia na acclama??o de Almacave, desdenhou a philaucia da dama do pa?o, e esmerilhou certas vergonteas p?dres do tronco dos Botelhos Correias de Mesquita, desprimorando-lhe as s?s com o facto de elle ter vivido dois annos em Coimbra tocando flauta. Em 1801 achamos Domingos Jos? Correia Botelho de Mesquita corregedor em Vizeu. Manoel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois annos, e frequenta o segundo anno juridico. Sim?o, que tem quinze, estuda humanidades em Coimbra. As tres meninas s?o o prazer e a vida toda do cora??o de sua m?e. O filho mais velho escreveu a seu pae queixando-se de n?o poder viver com seu irm?o, temeroso do genio sanguinario d'elle. Conta que a cada passo se v? amea?ado na vida, porque Sim?o emprega em pistolas o dinheiro dos livros, e convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os ? luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de seu filho Sim?o, e diz ? consternada m?e que o rapaz ? a figura e o genio de seu bisav? Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que d?ra Traz-os-Montes. Manoel, cada vez mais aterrado das arremettidas de Sim?o, s?e de Coimbra antes de ferias, e vai a Vizeu queixar-se, e pedir que lhe d? seu pae outro destino. D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavallaria. De Vizeu parte para Bragan?a Manoel Botelho, e justifica-se nobre dos quatro costados para ser cadete. No entanto Sim?o recolhe a Vizeu com os seus exames feitos e approvados. O pae maravilha-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagancia por amor do talento. Pede-lhe explica??es do seu mau viver com Manoel, e elle responde que seu irm?o o quer for?ar a viver monasticamente. Os quinze annos de Sim?o tem apparencias de vinte. ? forte de complei??o; bello homem com as fei??es de sua m?e, e a corpolencia d'ella; mas de todo av?sso em genio. Na plebe de Vizeu ? que elle escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna elei??o que faz, Sim?o zomba das genealogias, e m?rmente do general Caldeir?o que morreu frito. Isto bastou para elle grangear a mal-queren?a de sua m?e. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no desgosto d'ella, e na avers?o ao filho. As irm?s temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem elle brincava puerilmente, e a quem obedecia, se lhe ella pedia, com meiguices de crian?a, que n?o andasse com pessoas mecanicas. Finalisavam as ferias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um de seus criados tinha ido levar a beber os machos, e por descuido ou proposito deixou quebrar algumas vasilhas que estavam ? vez no parapeito do chafariz. Os donos das vazilhas conjuraram contra o criado, e espancaram-no. Sim?o passava n'esse ensejo; e, armado d'um fueiro que descravou d'um carro, partiu muitas cabe?as, e rematou o tragico espectaculo pela far?a de quebrar todos os cantaros. O povoleu intacto fugira espavorido, que ninguem se atrevia ao filho do corregedor; os feridos, por?m, incorporaram-se e foram clamar justi?a ? porta do magistrado. Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral que o prendesse ? sua ordem. D. Rita, n?o menos irritada, mas irritada como m?e, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem deten?a, fugisse para Coimbra, e esperasse l? o perd?o do pae. O corregedor, quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se zangado, e prometteu fazel-o capturar em Coimbra. Como, por?m, D. Rita lhe chamasse brutal nas suas vingan?as, e estupido juiz d'uma rapaziada, o magistrado desenrugou a severidade posti?a da testa, e confessou tacitamente que era brutal e estupido juiz. Sim?o Botelho levou de Vizeu para Coimbra as arrogantes convic??es da sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que pozera trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda atordoada d'este, o levantar-se d'aquelle ensanguentado, a bordoada que abrangia tres a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o estrepito dos cantaros a final, Sim?o deliciava-se n'estas lembran?as, como ainda n?o vi n'algum drama, em que o veterano de cem batalhas relembra os lour?s de cada uma, e esmorece, a final, estafado de espantar, quando n?o ? de estafar, os ouvintes. O academico, por?m, com os seus enthusiasmos era incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragedia. As recorda??es esporeavam-no a fa?anhas novas, e n'aquelle tempo a academia dava azo a ellas. A mocidade estudiosa, em grande parte, sympathisava com as balbuciantes theorias da liberdade, mais por presentimento que por estudo. Os apostolos da revolu??o franceza n?o tinham podido fazer reboar o trov?o dos seus clamores n'este canto do mundo; mas os livros dos encyclopedistas, as fontes onde a gera??o seguinte beb?ra a pe?onha que sahiu no sangue de noventa e tres, n?o eram de todo ignorados. As doutrinas da regenera??o social pela guilhotina tinham alguns timidos sectarios em Portugal, e esses de v?r ? que deviam pertencer ? gera??o nova. Al?m de que, o rancor a Inglaterra lavrava nas entranhas das classes manufactureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado, desde o principio do seculo anterior, com as s?gas de ruinosos e perfidos tractados, estava no animo de muitos e bons portuguezes que se queriam antes allian?ados com a Fran?a, Estes eram os pensadores reflexivos; os sectarios da academia, por?m, exprimiam mais a paix?o da novidade que as doutrinas do raciocinio. No anno anterior de 1800 sahira Antonio de Araujo de Azevedo, depois conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal. Rejeitaram-lhe as potencias alliadas as propostas, tendo-lhe em conta de nada os dezeseis milh?es que o diplomata offerecia ao primeiro consul. Sem delongas, foi o territorio portuguez infestado pelos exercitos de Hespanha e Fran?a. As nossas tropas, commandadas pelo duque de Laf?es, n?o chegaram a travar a lucta desigual, porque, a esse tempo, Luiz Pinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsem?o, negociara ignominiosa paz em Badajoz, com cedencia de Oliven?a ? Hespanha, exclus?o de inglezes dos nossos portos, e indemnisa??o de alguns milh?es ? Fran?a. Estes successos tinham irritado contra Napole?o os animos d'aquelles que odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se do rompimento com Inglaterra. Entre os d'esta parcialidade, na convulsiva e irriquieta academia, era voto de grande monta Sim?o Botelho, apesar dos seus imberbes dezeseis annos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e martyres do grande a?ougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Sim?o. Diffamal-os na sua presen?a era affrontarem-no a elle, e bofetada certa, e pistolas engatilhadas ? cara do diffamador. O filho do corregedor de Vizeu defendia que Portugal devia regenerar-se n'um baptismo de sangue, para que a hydra dos tyrannos n?o erguesse mais uma das suas mil cabe?as sob a clava do Hercules popular. Estes discursos, arrem?do d'alguma clandestina objurgatoria de Saint-Just, afugentavam da sua communh?o aquelles mesmos que o tinham applaudido em mais racionaes principios de liberdade. Sim?o Botelho tornou-se odioso aos condiscipulos que, para se salvarem pela infamia, o delataram ao bispo-conde, reitor da universidade. Um dia proclamava o demagogo academico na pra?a de Sans?o aos poucos ouvintes que lhe restaram fieis, uns por m?do, outros por analogia de bo?as. O discurso ia no mais acrisolado da ideia regicida, quando uma escolta de verdeaes lhe aguou a escandecencia. Quiz o orador resistir, aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os bra?os musculosos da cohorte do bispo-conde com quem as haviam. O jacobino, desarmado e cerrado entre a escolta dos archeiros, foi levado ao carcere academico, d'onde sahiu, seis mezes depois, a grandes instancias dos amigos de seu pae e dos parentes de D. Rita Preciosa. Perdido o anno lectivo, foi para Vizeu Sim?o. O corregedor repelliu-o da sua presen?a com amea?as de o expulsar de casa. A m?e, mais levada do dever que do cora??o, intercedeu pelo filho, e conseguiu sental-o ? mesa commum. No espa?o de tres mezes fez-se maravilhosa mudan?a nos costumes de Sim?o. As companhias da ral? despresou-as. Sahia de casa raras vezes, ou s?, ou com a irm? mais nova, sua predilecta. O campo, as arvores, e os sitios mais sombrios e ?rmos eram o seu recreio. Nas d?ces noites de estio demorava-se por fora at? ao repontar da alva; e aquelles que assim o viam admiravam-lhe o ar scismador e o recolhimento que o sequestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e sahia quando o chamavam para a mesa. D. Rita pasmava da transfigura??o, e o marido, bem convencido d'ella, ao fim de cinco mezes consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra. Sim?o Botelho amava. Ahi est? uma palavra unica, explicando o que parecia absurda reforma aos dezesete annos. Amava Sim?o uma sua visinha, menina de quinze annos, rica herdeira, regularmente bonita e bem nascida. Da janella do seu quarto ? que elle a vira a primeira vez para amal-a sempre. N?o ficara ella incolume da ferida que fizera no cora??o do visinho: amou-o tambem, e com mais seriedade que a usual nos seus annos. Os poetas cansam-nos a paciencia a fallarem do amor da mulher aos quinze annos, como paix?o perigosa, unica, e inflexivel. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze annos ? uma brincadeira; ? a ultima manifesta??o do amor ?s bonecas; ? a tentativa da avesinha que ensaia o v?o f?ra do ninho, sempre com os olhos fitos na ave m?e que a est? da fronde proxima chamando: tanto sabe a primeira o que ? amar muito, como a segunda o que ? voar para longe. Thereza de Albuquerque devia ser, por ventura, uma excep??o no seu amor. O magistrado e sua familia eram odiosos ao pae de Thereza, por motivos de litigios em que Domingos Botelho lhe deu senten?as contra. Af?ra isso, ainda no anno anterior dois criados de Thadeu de Albuquerque tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. Salta aos olhos que o amor de Thereza, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pae, era verdadeiro e forte. E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e fallaram-se tres mezes, sem darem rebate ? visinhan?a, e nem sequer suspeitas ?s duas familias. O destino, que ambos se promettiam, era o mais honesto: elle ia formar-se para poder sustental-a, se n?o tivessem outros recursos; ella esperava que seu velho pae fallecesse para, senhora sua, lhe dar com o cora??o o seu grande patrimonio. Espanta discri??o tamanha na indole de Sim?o Botelho, e na presumivel ignorancia de Thereza em coisas materiaes da vida, como s?o um patrimonio! Na vespera da sua ida para Coimbra, estava Sim?o Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ella foi arrancada da janella. O allucinado mo?o ouviu gemidos d'aquella voz que, um momento antes, solu?ava commovida por lagrimas de saudade. Subiu-lhe o sangue ? cabe?a; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexiveis da jaula. Teve tenta??es de se matar, na impotencia de soccorr?l-a. As restantes horas d'aquella noite passou-as em raivas e projectos de vingan?a. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperan?a com os calculos. Quando o chamaram para partir para Coimbra, lan?ou-se do leito de tal modo desfigurado, que sua m?e, avisada do rosto amargurado d'elle, foi ao quarto interrogal-o e despersuadil-o de ir era quanto assim estivesse febril. Sim?o, por?m, entre mil projectos, achara melhor o de ir para Coimbra, e esperar l? noticias de Thereza, e vir a Vizeu occultamente fallar com ella. Ajuizadamente discorr?ra elle, que a sua demora aggravaria a situa??o de Thereza. Desc?ra o academico ao p?teo, depois de abra?ar a m?e e irm?s, e beijar a m?o do pae, que para esta hora reservara uma admoesta??o severa, a ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria se elle recahisse em novas extravagancias. Quando mettia o p? no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendendo-lhe a m?o aberta, como quem pede esmola, e, na palma da m?o, um pequeno papel. Sobresaltou-se o mo?o; e, a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas: < A mudan?a do estudante maravilhou a academia. Se o n?o viam nas aulas, em parte nenhuma o viam. Das antigas rela??es restavam-lhe apenas as dos condiscipulos sensatos que o aconselhavam para bem, e o visitaram no carcere de seis mezes, dando-lhe alentos e recursos, que seu pae lhe n?o dava, e sua m?e escassamente suppria. Estudava com fervor, como quem j? d'alli formava as bases do futuro renome e da posi??o por elle merecida, bastante a sustentar dignamente a esposa. A ninguem confiava o seu segredo, sen?o ?s cartas que enviava a Thereza, longas cartas em que folgava o espirito da canceira da sciencia. A apaixonada menina escrevia-lhe a miudo, e j? dizia que a amea?a do convento f?ra mero terror de que j? n?o tinha m?do, porque seu pae n?o podia viver sem ella. Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Sim?o, chamado em pontos difficeis das materias do primeiro anno, tal conta deu de si, que os lentes e os condiscipulos o houveram como primeiro premiado. A este tempo, Manoel Botelho, cadete em Bragan?a, destacado no Porto, licenciou-se para estudar na universidade as mathematicas. Animou-o a noticia do reviramento que se d?ra em seu irm?o. Foi viver com elle; achou-o quieto; mas alheado n'uma ideia que o tornava misanthropo e intratavel n'outro genero. Pouco tempo conviveram, sendo a causa da separa??o um desgra?ado amor de Manoel Botelho a uma a?oriana casada com um academico. A esposa apaixonada perdeu-se nas illus?es do cego amante. Deixou o marido, e fugiu com elle para Lisboa, e d'ahi para Hespanha. Em outro relan?o d'esta narrativa darei conta do remate d'este episodio. No mez de Fevereiro de 1803 recebeu Sim?o Botelho uma carta de Thereza. No seguinte capitulo se diz minuciosamente a peripecia que for??ra a filha de Thadeu de Albuquerque a escrever aquella carta de pungentissima surpreza para o academico, convertido aos deveres, ? honra, ? sociedade e a Deus pelo amor. O pae de Thereza n?o embicaria na impureza do sangue do corregedor, se o ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o odio de um e o despr?so do outro. O magistrado mofava do rancor do seu visinho, e o visinho malsinava de venalidade a reputa??o do magistrado. Este sabia da injuriosa vingan?a em que o outro se ia despicando; fingia-se invulneravel ? detrac??o; mas de dia para dia se lhe azedava a bilis; e ? de cr?r que, se o n?o contivessem considera??es de familia, soffreria menos, desabafando pela b?ca d'um bacamarte, arma da predilec??o dos Botelhos Correias de Mesquita. Era obra sobrehumana o reconciliarem-se. Rita, a filha mais nova, estava um dia na janella do quarto de Sim?o, e viu a visinha rente com os vidros e a testa apoiada nas m?os. Sabia Thereza que era aquella menina a mais querida irm? de Sim?o, e a que mais semelhan?a de parecer tinha com elle. Sahiu da sua artificial indifferen?a, e respondeu ao reparo de Rita, fazendo-lhe com a m?o um gesto e sorrindo para ella. A filha do corregedor sorriu tambem, mas fugiu logo da janella, porque sua m?e tinha prohibido ?s filhas de trocarem vistas com pessoa d'aquella casa. No dia seguinte ? mesma hora, levada da sympathia que lhe caus?ra aquelle sorriso e aceno, tornou Rita ? janella, e l? viu Thereza com os olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando. Sorriram-se com resguardo, afastando-se, a um tempo, do peitoril das janellas; e assim, ambas de p?, no interior dos quartos, se estavam contemplando. Como a rua era estreita, podiam ouvir-se fallando baixo. Thereza, mais pelo movimento dos labios que por palavras, perguntou a Rita se era sua amiga. A menina respondeu com um gesto affirmativo, e fugiu, acenando-lhe um adeus. Estes rapidos instantes de se v?rem repetiram-se successivos dias, at? que, perdido o maior m?do de ambas, ousaram demorar-se em palestras a meia voz. Thereza fallava de Sim?o, contava ? menina de onze annos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ella havia de ser ainda sua irm?, recommendando-lhe muito que n?o dissesse nada ? sua familia. N'uma d'essas conversa??es, Rita descuidara-se, e levantou de modo a voz que foi ouvida d'uma irm?, que a foi logo accusar ao pae. O corregedor chamou Rita, e for?ou-a pelo terror a contar tudo que ouvira ? visinha. Tanta foi sua c?lera, que, sem attender ?s raz?es da esposa, que viera espavorida dos gritos d'elle, correu ao quarto de Sim?o, e viu ainda Thereza ? janella. ?l?!--disse elle ? p?llida menina--N?o tenha a confian?a de p?r olhos em pessoa de minha casa. Se quer casar, case com um sapateiro, que ? um digno genro de seu pae. Thereza n?o ouviu o remate da brutal apostrophe: tinha fugido aturdida e envergonhada. Por?m, como o desabrido ministro ficasse bramindo no quarto, e Thadeu de Albuquerque sahisse a uma janella, a c?lera d'aquelle redobrou, e a torrente das injurias, longo tempo represada, bateu no rosto do visinho, que n?o ousou replicar-lhe. Thadeu interrogou sua fllha, e acreditou que foi causa ? sanha de Domingos Botelho estarem as duas meninas praticando innocentemente, por tregeitos, em coisas de sua idade. Desculpou o velho a criancice de Thereza, admoestando-a a que n?o voltasse ?quella janella. Esta mansid?o do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explica??o no projecto de casar em breve a filha com seu primo Balthazar Coutinho, de Castro-d'Aire, senhor de casa, e egualmenle nobre da mesma prosapia. Cuidava o velho, presump?oso conhecedor do cora??o das mulheres, que a brandura seria o mais seguro expediente para levar a filha ao esquecimento d'aquelle pueril amor a Sim?o. Era maxima sua que o amor, aos quinze annos, carece de consistencia para sobreviver a uma ausencia de seis mezes. N?o pensava errado o fidalgo, mas o erro existia. As excep??es tem sido o ludibrio dos mais assizados pensadores, tanto no especulativo como na sciencia positiva. N?o era muito que Thadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e cora??o de mulher, cujas variantes s?o tantas e t?o caprichosas, que eu n?o sei se alguma maxima p?de ser-nos guia, a n?o ser esta: <> Isto ? o mais seguro; mas n?o ? infallivel. Ahi est? Thereza que parece ser unica em si. Dir-se-ha que as tres da conta, que diz a senten?a, n?o podem coexistir com a quarta, aos quinze annos? Tambem o penso assim, posto que a fixidez, a constancia d'aquelle amor, funda em causa independente do cora??o: ? porque Thereza n?o vai ? sociedade, n?o tem um altar em cada noite na sala, n?o provou o incenso d'outros galans, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada, desluzida pela ausencia, com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e amor nas palavras que a convencem de que ha um cora??o para cada homem, e uma s? mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Thereza teria em si as quatro mulheres da maxima, se o vapor de quatro incensorios lhe estonteasse o espirito? N?o ? facil, nem preciso decidir; e vamos ao conto. ?cerca de Sim?o Botelho, nunca diante de sua filha Thadeu de Albuquerque proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que elle fez logo foi chamar a Vizeu o sobrinho de Castro d'Aire, e prevenil-o do seu designio, para que elle em face de Thereza procedesse como convinha a um enamorado de fei??o, que mutuamente se apaixonassem e promettessem auspicioso futuro ao casamento. Por parte de Balthazar Coutinho a paix?o inflammou-se t?o depressa, quanto o cora??o de Thereza se congelou de terror e repugnancia. O morgado de Castro-d'Aire, attribuindo a frieza de sua prima a modestia, a innocencia e acanhamento, lisonjeou-se do virginal melindre d'aquella alma, e saboreou de antem?o o prazer de uma lenta, mas segura conquista. Verdade ? que Balthazar nunca se explicara de modo que Thereza lhe d?sse resposta decisiva; um dia, por?m, instigado por seu tio, affoitou-se o ditoso noivo a fallar assim ? melanc?lica menina: --? tempo de lhe abrir o meu cora??o, prima. Est? bem disposta a ouvir-me? A desplicencia enfadosa d'esta resposta abalou algum tanto as convic??es do fidalgo, respeito ? innocencia, modestia e acanhamento de sua prima. Ainda assim quiz elle no momento persuadir-se que a boa vontade n?o poderia exprimir-se d'outro modo, e continuou: --Os nossos cora??es penso eu que est?o unidos; agora ? preciso que as nossas casas se unam. Thereza impallideceu, e baixou os olhos. --Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradavel?!--proseguiu Balthazar, rebatido pela desfigura??o de Thereza. --Disse-me o que ? imposs?vel fazer-se--respondeu ella sem turva??o--O primo engana-se: os nossos cora??es n?o est?o unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensava em tal. Add to tbrJar First Page Next Page |
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