Use Dark Theme
bell notificationshomepageloginedit profile

Munafa ebook

Munafa ebook

Read Ebook: Amor de Perdição: Memorias d'uma familia by Castelo Branco Camilo

More about this book

Font size:

Background color:

Text color:

Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page

Ebook has 1512 lines and 47698 words, and 31 pages

--Disse-me o que ? imposs?vel fazer-se--respondeu ella sem turva??o--O primo engana-se: os nossos cora??es n?o est?o unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensava em tal.

--Quer dizer que me aborrece, prima Thereza?--atalhou corrido o morgado.

--N?o, senhor: j? lhe disse que o estimava muito, e por isso mesmo n?o devo ser esposa d'um amigo a quem n?o posso amar. A infelicidade n?o seria s? minha...

--Muito bem... Posso eu saber--tornou com refalsado sorriso o primo--quem ? que me disputa o cora??o de minha prima?

--Que lucra em o saber?

--Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem... ? exacto?

--?.

--E com tamanha paix?o que desobedece a seu pae?

--N?o desobede?o: o cora??o ? mais forte que a submissa vontade de uma filha. Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pae; mas eu n?o disse ao primo Balthazar que casava; disse-lhe unicamente que amava.

--Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de dizer!... quem pensaria que os seus dezeseis annos estavam t?o abundantes de palavras!...

--N?o s?o s? palavras, primo--retorquiu Thereza com gravidade--s?o sentimentos que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se lhe eu mentisse ficaria mais bem vista de meu primo?

--N?o, prima Thereza; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer em tudo. Ora, olhe, n?o duv?da declarar quem ? o ditoso mortal da sua preferencia?

--Que lhe faz saber isso?

--Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria muito de me v?r vencido por quem tivesse merecimentos que eu n?o tenho aos seus olhos. Tem a bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu primo Balthazar, se o tivesse em conta do seu amigo intimo?

--N'essa conta ? que eu o n?o posso j? ter...--respondeu Thereza, sorrindo e contando, como elle, as syllabas das palavras.

--Pois nem para amigo me quer?!

--O primo n?o me perdoa a sinceridade que eu tive, e ser? de hoje em diante meu inimigo.

--Pelo contrario...--tornou elle com mal rebu?ada ironia--muito pelo contrario... Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir casada com algum miseravel indigno de si.

--Casada!...--interrompeu ella; mas Balthazar cortou-lhe logo a r?plica d'este modo:

--Casada com algum famoso ?brio ou jogador de p?o, valent?o de aguadeiros, e distincto cavalheiro que passa os annos lectivos encarcerado nas cad?as de Coimbra...

Visivel ? que Balthazar Coutinho estava senhor do segredo de Thereza. Seu tio, naturalmente, lhe communicara a criancice da prima, talvez antes de destinar-lh'a esposa.

Ouvira Thereza o tom sarcastico d'aquellas palavras, e ergu?ra-se respondendo assim com altivez:

--N?o tem mais que me diga, primo Balthazar?

--Tenho, prima: queira sentar-se algum tempo mais. N?o cuide agora que est? fallando com o namorado infeliz: conven?a-se de que falla com o seu mais proximo parente e mais sincero amigo, e mais decidido guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a expressa vontade de seu pae, uma ou outra vez convers?ra da janella com o filho do corregedor. N?o dei valor ao successo, e tomei-o como criancice. Como eu frequentasse o meu ultimo anno em Coimbra, ha dois annos conheci de sobra Sim?o Botelho. Quando vim e me contaram a sua affei??o ao academico, pasmei da boa f? da priminha; depois entendi que a sua mesma innocencia devia ser o seu anjo custodio. Agora, como seu amigo, cumpunjo-me de a v?r ainda fascinada pela perversidade do seu visinho. N?o se recorda de ter visto Sim?o Botelho sociando com a infima vilanagem d'esta terra? N?o viu os seus criados com as cabe?as quebradas pelo tal varredor de feiras? N?o lhe constou que elle, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando ? canalha a guerra aos nobres, e aos reis, e ? religi?o de nossos paes? A prima ignoraria isto por ventura?

--Ignorava parte d'isso, e n?o me afflige o sab?l-o. Desde que conheci Sim?o, n?o me consta que elle tenha dado o menor desgosto ? sua familia, nem ou?o fallar mal d'elle.

--E est? por isso persuadida de que Sim?o deve ao seu amor a reforma de costumes?

--N?o sei, nem penso n'isso--replicou com enfado Thereza.

--N?o se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas ultimas palavras: eu hei de, em quanto viver, trabalhar para salval-a das garras de Sim?o Botelho. Se seu pae lhe faltar, fico eu. Se as leis a n?o defenderem dos ataques do seu demonio, eu farei v?r ao valent?o que a victoria sobre os aguadeiros n?o o poupa ao desgosto de ser levado a pontap?s para f?ra da casa de meu tio Thadeu d'Albuquerque.

--Ent?o o primo quer-me governar?--atalhou ella com desabrida irrita??o.

--Quero-a dirigir em quanto a sua raz?o precisar de auxilio. Tenha juizo, e eu serei indifferente ao seu destino. N?o a enfado mais, prima Thereza.

Balthazar Coutinho foi d'ali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial do dialogo. Thadeu, atonito da coragem da filha, e ferido no cora??o e direitos paternaes, correu ao quarto d'ella, disposto a espancal-a. Reteve-o Balthazar, reflexionando-lhe que a violencia prejudicaria muito a crise, sendo coisa de esperar que Thereza fugisse de casa. Refreou o pae a sua ira, e meditou. Horas depois chamou sua filha, mandou-a sentar ao p? de si, e em termos serenos e gesto bem composto, lhe disse que era sua vontade casal-a com o primo; por?m que elle j? sabia que a vontade de sua filha n?o era essa. Ajuntou que a n?o violentaria; mas tambem n?o consentiria que ella, sovando aos p?s o pundonor de seu pae, se d?sse de cora??o ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvalar na sepultura, e mais depressa desceria a ella, perdendo o amor da filha, que elle j? considerava morta. Terminou perguntando a Thereza, se ella duvidava entrar n'um convento, e ahi esperar que seu pae morresse, para depois ser desgra?ada ? sua vontade.

Thereza respondeu, chorando, que entraria n'um convento, se essa era a vontade de seu pae; por?m que se n?o privasse elle de a ter em sua companhia, nem a privasse a ella dos seus affectos, por m?do de que sua filha praticasse alguma ac??o indigna, ou lhe desobedecesse no que era virtude obedecer. Prometteu-lhe julgar-se morta para todos os homens, menos para seu pae.

Thadeu ouviu-a, e n?o lhe replicou.

O cora??o de Thereza estava mentindo. V?o l? pedir sinceridade ao cora??o!

Para finos entendedores, o dialogo do anterior capitulo definiu a filha de Thadeu de Albuquerque. ? mulher varonil, tem for?a de caracter, orgulho fortalecido pelo amor, desp?go das vulgares apprehens?es, se s?o apprehens?es a renuncia que uma filha faz de sua vontade ?s imprevidentes e caprichosas vontades de seu pae. Diz boa gente que n?o, e eu abundo sempre no voto da gente boa. N?o ser? aleive attribuir-lhe uma pouca de astucia, ou hypocrisia, se quizerem; perspicacia seria mais correcto dizer. Thereza adivinha que a lealdade trope?a a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se attingem por atalhos onde n?o cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis s?o raros na idade inexperta de Thereza; mas a mulher do romance quasi nunca ? trivial, e esta, de que resam os meus apontamentos, n?o o era. A mim me basta para cr?r em sua distinc??o a celebridade que ella veio a ganhar ? conta da desgra?a.

Da carta que ella escreveu a Sim?o Botelho, contando as scenas descriptas, a critica deduz que a menina de Vizeu contemporisava com o pae, pondo a mira no futuro, sem passar pelo dissabor do convento, nem romper com o velho em manifesta desobediencia. Na narrativa que fez ao academico omittiu ella as amea?as do primo Balthazar, clausula que, a ser transmittida, arrebataria de Coimbra o mo?o, em que sobejavam brios e ferocidade para mant?l-os.

Mas n?o ? esta ainda a carta que surprendeu Sim?o Botelho.

Parecia bonan?oso o ceo de Thereza. Seu pae n?o fallava em claustro, nem em casamento. Balthazar Coutinho volt?ra ao seu solar de Castro-d'Aire. A tranquilla menina dava semanalmente estas boas novas a Sim?o, e este, alliando ?s venturas do cora??o as riquezas do espirito, estudava incessantemente, e desvelava as noites arquitectando o seu edif?cio de futura gloria.

Ao romper d'alva, d'um domingo de Junho de 1803, foi Thereza chamada para ir com seu pae ? primeira missa da igreja parochial. Vestiu-se a menina assustada, e encontrou o velho na ante-camara a receb?l-a com muito agrado, perguntando-lhe se ella se erguia de bons humores para dar ao author de seus dias um resto de velhice feliz. O silencio de Thereza era interrogador.

--Vais hoje dar a m?o de esposa a teu primo Ballhazar, minha filha. ? preciso que te deixes cegamente levar pela m?o de teu pae. Logo que d?res este passo difficil, conhecer?s que a tua felicidade ? d'aquellas que precisam ser impostas pela violencia. Mas repara, minha querida filha, que a violencia de um pae ? sempre amor. Amor tem sido a minha condescendencia e brandura para comtigo. Outro teria subjugado a tua desobediencia com maus tractos, com os rigores do convento, e talvez com o desfalque do teu grande patrimonio. Eu, n?o. Esperei que o tempo te aclarasse a raz?o, e felicito-me de te julgar desassombrada do diabolico prestigio do maldito, que acordou o teu innocente cora??o. N?o te consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a reflex?o fizesse mal ao fervor de boa filha com que tu vais abra?ar teu pae, e agradecer-lhe a sisudez com que elle respeitou o teu genio, velando sempre a hora de te encontrar digna do seu amor.

Thereza n?o desfitou os olhos do pae; mas t?o abstrahida estava, que escassamente lhe ouviu as primeiras palavras, e nada das ultimas.

--N?o me respondes, Thereza?!- tornou Thadeu, tomando-lhe caridosamente as m?os.

--Que hei-de eu responder-lhe, meu pae?--balbuciou ella.

--D?s-me o que te pe?o? enches de contentamento os poucos dias que me restam?

--E ser? o pae feliz com o meu sacrificio?

--N?o digas sacrificio, Thereza... A'manh? a estas horas ver?s que transfigura??o se fez na tua alma. Teu primo ? um composto de todas as virtudes; nem a qualidade de ser um gentil mo?o lhe falta, como se a riqueza, a sciencia e as virtudes n?o bastassem a formar um marido excellente.

--E elle quer-me, depois de eu me ter negado?--disse ella com amargura ironica.

--Se elle est? apaixonado, filha!... e tem bastante confian?a em si para cr?r que tu has de amal-o muito!...

--E n?o ser? mais certo odial-o eu sempre!? Eu agora mesmo o abomino como nunca pensei que se podesse abominar! Meu pae...--continuou ella, chorando, com as m?os erguidas--mate-me; mas n?o me force a casar com meu primo! E' escusada a violencia, porque eu n?o caso!..

Thadeu mudou de aspecto, e disse irado:

--H?s de casar! Quero que cases! Quero!... Quando n?o, amaldi?oada ser?s para sempre, Thereza! Morrer?s n'um convento! Esta casa ir? para teu primo! Nenhum infame ha de aqui p?r um p? nas alcatifas de meus av?s. Se ?s uma alma vil, n?o me pertences, n?o ?s minha filha, n?o podes herdar appellidos honrosos, que foram pela primeira vez insultados pelo pae d'esse miseravel que tu amas! Maldita sejas! Entra n'esse quarto, e espera que d'ahi te arranquem para outro, onde n?o ver?s um raio de sol.

Add to tbrJar First Page Next Page Prev Page

Back to top Use Dark Theme