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Munafa ebook

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Read Ebook: Humus by Brand O Raul

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Ebook has 666 lines and 55286 words, and 14 pages

outro o sordido pardieiro, no alto a noite de luar como uma camelia gelada. Dentro d'isto sonho.

Ponho-me a olhar para elle--ponho-me a olhar para mim. Passou a vida n'aquella inutilidade, de que sae a rev?r sonho, e com os c?tos partidos a esvoa?ar na noite dorida. Primeiro afundou-se em experiencias do laboratorio, ? procura da pedra philosophal.--Ridiculo. Depois na aplica??o da electricidade aos vegetaes, que se consomem de febre, que se desentranham em fl?r, sem produzirem fructo.--Grotesco. Agora ninguem o arranca a infindaveis monologos cahoticos:--A morte! a morte! a morte!-- Incongruencia, obscuridade e d?r tambem; a d?r de quem vem da irrealidade, encolhido e transido; a figura estranha de quem se debate com o sonho e sae da lucta esfarrapado e doirado. Se o tiram do sonho titubia e n?o sabe onde p?e os p?s. Tem as azas partidas. Comprehende ent?o a sua inutilidade e desespera-se at? reentrar na nuvem que o envolve. Puxa a si o misterio, e, entre as arvores e os fios eletricos que correm todo o quintal e ligam todas as arvores, ou?o a sua voz magnetica, que impregna de sonho o luar todo branco:

--Isto ? um fluido d?r, falta-me condensal-o. ? uma nuvem que envolve tudo, que vem do turbilh?o da Via Lactea, arrasta tudo comsigo, e ascende em espiral at? Deus. N?o, a sensibilidade n?o ? individual, ? universal. Basta ferir a sensibilidade, que vae dos nossos nervos at? ? Via Lactea, para transformar as no??es do tempo, do espa?o, da vida e da morte--basta deitar dentro d'um tanque uma gota de vermelho para tingir toda a agua. Deito-lhe sonho dentro...

A villa ? tumular e encardida, mas oculta dentro dos seus muros um sonho desconforme. Talvez desconexo, mas desconforme. O sonho ? d'elle: a propria casa de granito rev? sonho. O Gabiru mistura, revolve, extrahe sonho do sonho. Debalde o que ? mesquinho lhe mostra os dentes: o Gabiru n?o ouve, n?o v?, n?o sente. O sonho isolou-o da propria mulher transida de frio, no casar?o que deu ? costa como uma nau do passado, com o cavername roido pelo mar das trevas.

? um s?r quasi ethereo. Nem sei dizer se existiu, se a criei; sei que se sumiu n'um s?pro cada vez mais ephemera, com dois olhos verdes de espanto. Sei que me pegou sonho, e que fui levado, perdido, como uma coisa inerte...

Morreu transida de frio. Uma mulher palida--o que vale um passaro. Ternura e dois olhos verdes de espanto. Hesita, mal pousa os p?s no ch?o, chora baixinho, e vae talvez acordal-o, queixar-se... N?o se atreve, e esbo?a um sorriso logo molhado de lagrimas. Morre de frio. Agosto--morre de frio. At? para lhe sorrir se esconde, e p?e-se ent?o a olhar o muro a falar com o muro, a queixar-se ? grande nodoa de humidade da parede. Dois olhos verdes de espanto, um vestido de seda, e as meias rotas nos calcanhares. Um nada de ternura tel-a-hia salvo--ninguem o arranca ?quelle sonho informe. Morta...

Ninguem. Depois que a perdeu tresvariou. Estende fios no ch?o entre as arvores, e as arvores, sob o fluido electrico, todo o inverno se desentranham em fl?r. Pegou-lhes sonho tambem. ? um desbarato, uma profus?o que as devora. Absurdo. O quintalorio ao p? da muralha, que h? seculos rev? humidade, n?o ? maior que um len?o; a primavera s? chega aqui tarde e de mau modo, com pena das arvores de sagu?o. Arrepende-se logo. J? veem que o absurdo ? maior ainda... Dezembro e primavera. O c?o gelado, um brilho de estrellas em engastes novos, e, entre a carie das paredes, as macieiras baixinhas e humildes como exhala??es de ternura. Mortas. Mortas, seccas de sonho. Mortas as arvores desfeitas em fl?r.

--Este efluvio ? que ? tudo: a torrente de ideias e a torrente de paix?es. A minha athmosphera, a alma, penetra a tua athmosphera, e dissolve-a, domina-a, conquista-a. Recua, tacteia, hesita. Mas escusas de falar para que eu te entenda. A materia muitas vezes n?o me deixa comprehender, mas ? raro que eu n?o saiba logo quem tu ?s, e, mesmo que seja a primeira vez que te fale, as vezes que te tenho encontrado no mundo.--E logo:--A vida perdi-a a sonhar. Depois de morta ? que dei com ella. Mas que importa! Acabei com a morte, vou resuscital-a. Viveremos sempre, amar-nos-hemos sempre...

A noite ? d'aparato. A lua de coral sobe por traz da montanha em osso, e depois na chanfradura das ameias. Mais fl?res--todos os galhos d?o fl?r. Sente-se, quasi se ouve, a d?r das arvores, dos s?res vegetativos, ao terem de apressar, de modificar a sua vida lenta, dispersos em ternura.

--Perdi-a, perdi a vida! Esqueci-a como esqueci tudo. Perdi-a e mais dois dias e tinha suprimido a morte!

Sob o fluido electrico o quintal tresnoita. Cae neve e abrem os primeiros bot?es. A arvore transforma-se n'um s?r dorido e esplendido--transforma-se em sonho--em sonho desfeito em fl?r, em flores espezinhadas uma atraz das outras por camadas sucessivas. Os ramos espremidos escorrem d?r. At? as pedras deitam tinta. O quintal escorre sonho como a alma do Gabiru. Atrevem-se e acordam as coisas apodrecidas, e velhas pedras iludidas p?em-se a cantar n'esse pio triste dos sapos, que sae da fealdade como uma inutil queixa de desventura. A noite concava e branca--gelada--cobre indiferentemente tudo isto. Que n?o cobre a noite? Quatro paredes negras, no fundo remexe o sonho. Perco tambem a no??o da realidade.

--Tanta fl?r!

--Para a sua c?va.--E pondo em mim os olhos atonitos:--O que ? preciso ? ir buscal-os ao fundo da mixordia, arrancal-os ? obscuridade, juntar outra vez as boccas dispersas. N?o morrer ? nada: vou resuscital-os...

Imagina o negrume d'um po?o--imagina dentro o espanto, e n?o sei que luz viva, n?o sei que d?r recalcada, n?o sei que de humilde, que quer viver apesar de dorido. Vivo, e a pata enorme que espezinha e esmigalha. Escurid?o e oiro--silencio e oiro--espanto e oiro.

--V? tu a arvore... Uma camada de fl?r--um grito; outra camada de fl?r--outro grito. V? tu a arvore como se transforma n'um phantasma d'arvore, e depois em emo??o!...

Suprimir a morte! ? uma coisa grotesca. O sonho transborda, o luar transborda--branco e d?r--branco e sonho. Depois o silencio, depois a sua voz magnetica--depois a sombra immensa que amea?a desabar sobre n?s, no quintal do tamanho d'um len?o. Desato aos gritos quando todas as roseiras, fartas de dar rosas, seccam, quando da cathedral e do silencio caem uma, duas, tres badaladas, que me apertam uma, duas, tres vezes o cora??o. E o Gabiru com olhos de phrenesi insiste:

--N?o morrer ? nada, suprimi a morte. O que ? preciso ? arrancar os outros ao silencio. ? uma coisa simples, ? uma quest?o de synthese.

--A morte,--afirmo-lh'o--? o repouso eterno.

--Repouso eterno, estupido! ? exactamente o que est? vivo, a morte. ? o que est? mais vivo.

Na escuridade e no silencio o sonho deita bra?os desconformes. Pega-se-me. Debalde lucto contra o fluido que avan?a para mim como uma exhala??o de phrenesi e de nervos. A teia invisivel rodeia lentamente a inutilidade, a teia dissolve as almas, e fios impalpaveis apoderam-se da villa quieta e absurda onde s? elle se atreve e scisma... Isto ? possivel ou isto n?o passa d'um sonho grotesco, de mais outro sonho grotesco?

De que ? feita a tibornea, o liquido viscoso, c?r de sab?o, com filamentos verdes, que o Gabiru com olhos de sapo rev? no vidro, atravez da luz--a maior descoberta do seculo, o s?ro que acaba de vez com a velhice e arreda a morte para confins ilimitados? Alguns saes, o sodium, o enxofre, o magnesio, o bromio, o carbone--e sonho. Dezasete elementos, entre os quaes a prata, o cobre, o oiro, o arsenico--e d?r. Materia, espirito e concentra??o. O misterio ? este e mais nenhum: ? exprimir como o que ? espirito se transforma em materia, como a poeira se condensa, como a alma se faz corpo. Gritos, mais desespero. Contar o qu?? As noites infinitas, as m?os que tentam arrancar farrapos ao manto em que o misterio se envolve e procuram retel-o quando elle se dissipa? Outra vez absorp??o, outra vez o rebuscar em ti mesmo o inexplicavel, e os nervos que tendem e quebram o cerebro que doe, o lento acordar das vozes submersas, a discuss?o, o tumulto, e poder distinguir entre tantas boccas que falam, a unica que tem direito a falar. ? d'esta obscuridade, d'esta discordancia, que emerge a ideia de suprimir a morte. N?o te rias. J? t'o disse: ? um s?r aparte com c?tos em vez d'azas, que se agitam n'um desespero para voar. N?o se contenta com esta vida nem d? por ella, mas fica sempre a meio caminho, e t?o dorido que n?o ? possivel tocar-lhe. J? t'o disse: ? um s?r grotesco que p?e em mim os olhos turvos e teima, insiste, repete:

--Sobre a villa, repara, paira uma athmosphera cinzenta, composta de todas as athmospheras: ? a alma da villa.--E afirma cheio de convic??o:--Deito-lhe sonho dentro.

Queira ou n?o queira faz-me scismar... Na realidade morrer ? absurdo. Nunca me capacitei a serio que tivesse de morrer. Morrer ? estupido. N?o comprehendo a morte, e, por mais que desvie o olhar, prendo-me sempre a essa hora extrema, s? essa hora me interessa... Um s?r grotesco, um unguento verde, e aquella voz aos meus ouvidos. ? caricato e pega-me doirado.

E o peor ? que este sonho ? afinal o meu sonho e o teu sonho. Ninguem o confessa sen?o a si proprio. O nosso sonho ? n?o morrer. Quando a gente se esquece a vida tem j? passado. E quando a vida tem j? passado ? que nos agarramos com mais saudades ? vida. A resigna??o custa muitas horas doridas em que ficamos alheados e suspensos. A morte... A morte ? inevitavel?--pergunto baixinho. E como a morte ? inevitavel, como n?o lhe posso fugir, para n?o perder tudo, criei a outra vida. E afinal quem sabe se este sonho que a humanidade traz comsigo desde que p?z o p? no mundo n?o ? o maior de todos os sonhos e o unico problema fundamental?

A verdade ? que teima. N?o nos larga na vida e levamol-o escondido para a c?va. A verdade ? que foi esta sempre a nossa maior aspira??o, que h?-de acabar talvez por se converter em realidade. Temos construido o universo assim, podemos construil-o de outro modo. Falta s? um passo... A vida eterna admitimol-a, mas, no fundo, o que n?s queremos ? este sol, esta pobreza, esta d?r, estas ilus?es mo?das e remo?das. Deixem-nos a vida que acceitamos tudo. Aqui h?, portanto, um erro primario. Protestas do fundo do teu s?r: a morte ? absurda. ? preciso cortar um n? que n?o existe. E passar do imperio do possivel para o imperio do impossivel ? talvez uma quest?o de vontade. A vida ? um acto de f? de todos os instantes. Acordo e grito:--Eu n?o vivi! eu n?o vivi!--E cada vez o meu protesto ascende mais alto. Quero tornar a viver a mesma vida aborrecida e inutil, quero recome?ar a desgra?a.

Ninguem pode com semelhante peso. N?o h? quem possa com elle. Na solid?o, a primeira coisa que procuro ? a ninharia para esquecer a morte. Um minuto s?s a s?s com o espanto, recamado de mundos, que caminha desabaladamente no silencio, dura um seculo e outro seculo ainda. N?o posso, nem tu nem eu, viver sobre o fio d'uma espada e olhar para a voragem d'um e d'outro lado; n?o posso arcar todos os dias com esta usura que me gasta sem mergulhar na insignificancia. E agora at? a insignificancia me ? impossivel. O silencio... O peor de tudo ? o silencio e o que se cria no silencio, o que eu sinto que remexe no silencio...

Carrega em cima de n?s tal peso que ninguem o suportava se d?sse por elle. ? o peso do espanto.

Juntem a isto a villa comesinha, e o negrume que levanta os c?tos esfarrapados, como se fosse voar, quando o padre Thimotheo d? o seu passeio habitual no pateo da Misericordia, e, na meia duzia de metros quadrados com arvores ethicas do jardim, as Souzas arrastam os vestidos, ultima moda do Grandella. Juntem a isto a grande nodoa de humidade a que ella costumava queixar-se. Juntem a isto a Morte e aquela voz de desespero cada vez mais phrenetica, que n?o cessa de pr?gar, e que me p?e em frente de mim mesmo, que ? o que mais temo no mundo.

--O que eu quero, ? tornar a viver. A minha saudade ? esta. O que eu quero ? recome?ar a vida gota a gota, at? nas mais pequenas coisas. N?o reparei que vivia e agora ? tarde. Sinto-me grotesco. Recome?al-a nas tardes estonteadas da primavera e na alegria do instincto. Encontrei h? pouco uma arvore carcomida: deixaram-na de p?, e um unico ramo ainda verde desentranhou-se em fl?r... Podesse eu recome?ar a vida!--Cala-te!--Terei de confessar a mim proprio que nunca amei, que nunca fui arrastado at? ao amago pelo desespero ou pela paix?o e que de tal forma se me entranharam as palavras e as regras, que passei a vida a mascar palavras e regras? Terei de confessar a mim mesmo que vou para a c?va com a bocca a saber-me a vulgaridade e a p?? Antes me soubesse a f?l--antes a d?r!...--Mas sonhaste, estupido!--Sonho. E o que me resta nas m?os inermes, nas m?os para que olho com espanto e terror, nas m?os de velho, sen?o grotesco, farrapos de grotesco, restos de grotesco, com alguma tinta em cima?... N?o; viver ? que ? bom, viver com o instincto, como os ladr?es e os bichos, os malfeitores e as f?ras, sem pensar, sem sonhar, sem palavras nem leis, at? cahir a um canto, morto e feliz, de barriga para o ar. Isso sim! isso sim!...--Quantas conversas temos tido juntos! quantas discuss?es inuteis! quantos desesperos de que n?o h? sahir, batendo com a cabe?a na mesma parede! ?s vezes subjugo-o:--Cala-te! cala-te!--?s vezes fala elle mais alto e domina-me. Rio-me de ti e imp?es-te-me. ?s ridiculo e s? tu te atreves; s? tu ?s feliz porque te atreves a dizer inconveniencias sem f? nem lei. S? tu n?o tens methodo, s? tu te fechas a sete chaves ? tua vontade, livre, feliz e despresado. No fundo invejo-te.

Aquilo incha, trasborda, como um rio que alaga tudo. Pega-se-me e molha-me. Aturde-me. ? s? elle que fala no mundo, cada vez mais obsecado e mais alto, com interjei??es e gestos desordenados pelo meio:--Estupido!--Hei-de falar! quero falar! hei-de por for?a falar!--E h? aqui d?r e ridiculo. H? um esgrouviado a dizer vulgaridades, e uma coisa que vem da raiz da vida n'um fremito e que me mete medo. Um bafo, e logo mil vozes que aproveitam o momento e desatam a pr?gar sem tom nem som.--Toda a gente se ri de ti...--Deixal-o.--Toda a gente se ri! toda a gente se ri!--Quero por for?a tornar a viver! hei-de por for?a tornar a viver! Sinto que a minha vida n?o termina aqui. Este sonho hei-de leval-o a cabo.

Debalde lhe aconselho calma, o Gabiru insiste:

--Entrevejo na morte um sofrimento atroz. O inferno n?o ? uma palavra v?. ? um desespero sem consciencia nem gritos. A vida n?o ? sen?o uma tregua--um ah--e logo um mergulho n'esse inferno de d?r. Na d?r estreme. Eis o que ? a morte: a d?r estreme, a d?r emudecida. O terror instinctivo da morte ? uma advertencia. N?o quero morrer e vou resuscital-os!... Viver sempre! amar sempre! sonhar sempre!--que esplendido sonho! A vida ? quasi nada. Tudo que custou tanto desespero, tudo sumido n'um buraco para sempre. Ouves? Para todo o sempre. De que serviram os gritos, as lagrimas, subir, trepar, chegar ao t?po do calvario? Para todo o sempre! Bem sei: aquillo a que me apego ? impalpavel: ? a mulher que passou, assomando-lhe ao focinho uma express?o de ternura, e que nunca mais tornar?s a encontrar; ? aquella manh? de chuva em que nos molhamos juntos e que se n?o repete, ? o minuto que nos escorre das m?os como um fio d'agua, mas doira-o o sol, e ? esse mesmo minuto translucido que quero tornar a viver, sem a sombra da morte a meu lado. ? a essa mesma ninharia que ? a vida a que deito as m?os com desespero. A vida ? nada--? esta c?r, esta tinta, esta desgra?a. ? saudade e ternura. ? tudo. ? os meus mortos e os meus vivos. Levo pena de tudo, at? da fealdade. Agarro-me a tudo, tudo me prende, o sonho que n?o existe, as horas inuteis, o possivel e o impossivel. A floresta n?o faz parte do meu s?r, e eu tenho aqui a floresta, o som e o aroma da floresta, a vida da floresta; o c?o n?o faz parte do meu s?r, e eu sou o c?o profundo, o c?o tragico e o c?o esplendido. D?-me a vida--dou-te tudo em troca... Agarro-me como um naufrago, agarro-me com uma saudade, que vem n?o s? de mim, mas de muito mais longe, da base mesmo da vida. Para sempre! para todo o sempre!--E, com um suspiro mais fundo, repete:--Suprimi a morte, vou resuscital-os!

Trago comigo um p? capaz de doirar a propria eternidade. N?o sei d'onde me vem, nem porque nome lhe hei-de chamar. Todas as noites sufoco deante do negrume--elle reanima-me. Insiste deante das for?as desabaladas e da imagem da morte. Quero a vida! quero-a! quero-a vulgar, tumultuaria e cega. Inerte n?o! inconsciente n?o! Tenho-lhe horror.

Se com o nosso esfor?o colectivo forjamos o mundo, porque deixamos a morte de p?? Criei o universo. Destaquei da massa confusa o tempo--destaquei o sonho.

Fui eu que dei val?res e perspectiva ao quadro. Fui eu que lhe entornei ilus?o. Na verdade s? existem c?res como s? existem gritos. Porque n?o hei-de acabal-o? ? talvez uma quest?o de vontade. Se at? para dar o primeiro passo precisamos de cr?r, porque n?o havemos de dar o ultimo passo? Ilus?o, mentira? Mas eu ? que fa?o a verdade e a mentira. Dou-lhes o meu bafo. Deus cria-me a mim, eu crio Deus. Uma verdade pode n?o existir. Com uma mentira posso forjar outro mundo. Arredemos de v?z este suor frio.

A noite vem, a noite avan?a. Sinto os mortos. Ainda vivo, j? estou em seu poder: fa?o parte da legi?o. Noite immensa sem gritos. Peor que sofrer ? n?o sofrer--para sempre. ? nunca mais sentir. ? ter as orbitas vazias voltadas para o c?o e n'ellas n?o se reflectir a luz das estrellas. Mais um passo e ? o silencio absoluto. Mais um passo e tapas-me para sempre a bocca.

N?o me importa ser feliz--n?o me importa ser desgra?ado. O que me importa ? o que h? depois, ? o que est? por baixo da terra e o que est? por cima da terra.

J? n?o lucto. E elle insiste e cada vez pr?ga mais alto:

--Eu n?o vivi. Que importa, vaes morrer! Para sempre, para todo o sempre, o mesmo buraco d'onde n?o sae rum?r. Escuta isto: d'onde n?o sae rum?r. Repete isto: para todo o sempre. Nenhuma explica??o te ? licita, nenhuma transac??o ? possivel. A morte n?o espera nem atende. ? estupida. Primeiro ? estupida, depois ? incomprehensivel. ? tremenda porque contem em si mistifica??o ou belleza. Absurdo ou uma belleza com que n?o posso arcar. O nada ou uma coisa que a minha imagina??o n?o atinge. Se ? o misterio, e se desvenda d'um golpe, apavora-me. Se ? o nada repugna-me. Apenas um minuto, e l? em cima as mesmas estrellas, e outros vagalh?es de estrellas... Para ella tanto vale um segundo como um seculo, carrega um s?r inutil ou um s?r delicado com a mesma indiferen?a para o tumulo. Tens passado a vida a esperal-a. Que outra coisa fizeste na vida sen?o esperar a morte? ? a tua maior preocupa??o. Debalde a arredamos: a vida n?o ? sen?o uma constante absorp??o na morte. Ent?o para que nasci? Para v?r isto e nunca mais v?r isto? Para adivinhar um sonho maior e nunca mais sonhar? Para presentir o misterio e n?o desvendar o misterio? Levo dias, levo noites a habituar-me a esta ideia e n?o posso. Tenho-te aqui a meu lado. Nunca se cerra de todo a porta do sepulchro. Estou nas tuas m?os... Adeus s?l que n?o te torno a v?r, e agua que te n?o torno a v?r. Arvores, adeus arvores que minha m?e disp?z; adeus pedra gasta pelos seus passos e que meus passos ajudaram a gastar. Para sempre! para todo o sempre! Tenho-te horror e odeio-te. Interrompes os meus calculos. ?s o maior dos absurdos. V?r para n?o v?r, ouvir para n?o ouvir, viver para morrer!...

E aqui te fa?o uma confiss?o: o que mais me custa a largar ?, como ? cobra a pelle, a vida comesinha. Se ? a vida superior ? tambem o meu lume. ? o ruido monotono da chuva nas vidra?as. Al?m da alma h? outra alma que se apega ?s pequenas coisas, ? columna d'oiro perfumada que me entra de manh? pela janella--outra alma humilde e pequenina, que se acomoda com um fio d'agua, um cantinho de lume... ? a alma da materia. N?o, o fim logico da vida n?o ? morrer, ? viver sempre, ? ascender sempre. At? onde? At? Deus. Vou resuscital-os! Vou resuscital-os! E em elles se pondo a caminho vaes v?r doirado. A vida toma novo impulso. Desaparecendo a morte ? que tu abranges a vida. Vaes v?r a c?r que toma o mundo, as tintas que o mundo escorre, e as fl?res que as arvores criam... Vou resuscital-os! Vou resuscital-os!...

A terra remexe. Sinto um esfor?o e revive o suor da desgra?a; um arranco na profundidade, e todas as primaveras dispersas n?o tardam, uma atraz de outra, a reflorir. H? sepulchros at? ao fundo do globo. De mais longe vem um impeto--s?o outros mortos ainda. Uma sombra desmedida, uma sombra que se despega da obscuridade, com todas as lagrimas que se choraram no mundo condensadas, vae desabar sobre n?s. As suas palavras criam. O peor foi tocar-lhe! Neste debate entra agora o mundo todo. Entram as arvores e as pedras. N?o h? duvida para mim: quando sahir disto tenho renascido: o mundo n?o ? o mesmo mundo, o c?o o mesmo c?o, a vida a mesma vida. O que existe ? outra coisa doirada e immensa, esfarrapada e immensa. P?e-se a caminho outro panorama, como se todo o infinito de repente se aproximasse de n?s, com os seus mundos, o seu misterio indecifrado. P?e-se a caminho a immensa floresta apodrecida, outras arvores como nunca vi arvores, e outros s?res desmedidos e phreneticos. P?e-se a caminho uma vida que h? muito sentia aqui ao lado, sem me atrev?r a olhal-a. Tudo mudou de repente. Repara que o c?o augmentou em profundidade. O que existe s?o gritos, o que existe ? o espanto. O peor foi tocar-lhe...

Um remexer de treva, que at? agora pod?mos recalcar, soltou-se da escurid?o e p?z-se a caminho. J? n?o h? esfor?os que a contenham... Um borr?o tragico avan?a--outro borr?o informe prepara-se. Os mortos empurram os vivos--desde profundidades desconhecidas...

Passa no mundo a estranha ventania: ? a morte que custa a separar da vida. O rasto que fica atraz, a perspectiva que fica adiante foi cortada. A morte est? aqui d'um lado, est? do outro a vida. Tinha raizes enormes: arrancaram-lhas de vez. Agora atrevo-me a tudo. O turbilh?o colerico abala o mundo, oiro e negro, esplendido e feroz. Desenraiza tudo. As almas acordam n'um sobresalto, e n?o h? homem que se n?o ponha ? escuta. Passa no mundo a doida ventania das nossas aspira??es secretas, das nossas duvidas, dos nossos desesperos. ? uma voz--s?o muitas vozes. ? um grito--s?o muitos gritos.--? o grito contido h? milhares d'annos, o grito dos mortos libertos.

A VILLA E O SONHO

Em logar do uso de palavras fazia isto melhor com o emprego de dois tons--cinzento e oiro: uma nodoa que se entranha noutra nodoa. O sonho turva a villa. A primavera toca n'este charco s? l?do e azul: tinge-o e revolve-o. Mas o habito de tal forma se entranhou na vida, que cohabitam com o espanto e continuam a ir ? reparti??o. Horas na torre. Mais silencio. A morte roda aqui por perto, alguem fala:--Ent?o como passou? passou bem?--O habito tem profundidades de legoa.

A principio olham-se desconfiados, com medo uns dos outros. Sem duvida gostam de viver mais um seculo, mais dois seculos, mas n?o sabem ainda que emprego h?o-de dar ? existencia. N?o se lhes dava mesmo de morrer com tanto que continuassem a jogar o gam?o no infinito. O que lhes custa mais a perder n?o ? a vida, s?o os habitos. Veem-se e n?o se reconhecem. H? almas embrionarias, velhos lojistas que olham para si proprios com terr?r. A maior parte da gente, nasce, morre sem ter olhado a vida cara a cara. N?o se atrevem ou ignoram-na: a outra existencia falsa acabou por os dominar. N?o h? mascara que n?o custe a arrancar--h? mentiras que teem raizes mais fundas que a verdade. Por isso, para uns n?o morrer ? continuar a jogar o gam?o pela eternidade, para outros ? juntar uma moeda a outra moeda, um dia a outro dia inutil. Sempre... J? na botica dois idiotas recome?aram com escrupulo uma partida que deve durar cem annos, e o bocal amarello, as moscas mortas est?o alli com outro ar. Fixaram-se. Est?o alli embirrentas e sordidas para toda a eternidade.

Pouco e pouco o sonho dissolve, a nodoa d'oiro alastra. Vae mexer com o subterraneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso h? dois mil annos, sobresalta o instincto, bole com todas as almas sobrepostas at? ao fundo da vida. Transforma, volta a existencia do avesso, deita o muro abaixo. Por ora ? s? uma id?a, mas sae-nos de cima o peso do mundo... Mexe em tudo, revolve todas as raizes que se apoderaram da villa. O sonho cae na regra, no charco de interesses, na hypocrisia que se n?o atreve, nos dentes afiados que se transformaram em sorrisos, na paciencia de quem espera uma heran?a com vagares de quem tece uma teia. Certas existencias s?o formidaveis, outras existencias s?o como alcovas onde nunca entrou a luz e onde agora se agita e gesticula um s?r desconhecido. Certas existencias s?o feitas de odio minusculo, de inveja que sorri--porque nem a inveja se atreve. Certas existencias s?o crepusculares. Em certas existencias s?o os mortos que ordenam, muito mais vivos e imperiosos depois que est?o no sepulchro. Quasi toda esta gente se desconhece. Nunca se atreveram e agora perguntam-se:--Sou eu? sou eu?

Aqui estou eu que finjo que sorrio, e acabo por fingir toda vida. A minha vontade era anular-te--e finjo, e o sorriso acaba por ganhar cama, a bocca por se habituar ? mentira, a ponto de j? n?o saber discernir o meu s?r, do s?r artificial que criei pe?a a pe?a.--Pois sim... pois sim...--Mas atraz disto h? outra coisa--h? f?l; E quando tiro a mascara? Mas eu j? n?o posso tirar a mascara, mesmo quando me fecho a sete chaves: a mentira entranhou-se-me na carne. Este phantasma chegou a ter mais vida que a propria realidade. E aqui andam outros s?res. Eu n?o sei quem sou e at? o meu metal de voz estranho. Eu n?o sou quem falo. A meu lado, atraz de mim, vem um cortejo de phantasmas, uma cauda disforme que me conduz e empurra, e adiante de mim h? uma projec??o de vida at? aos confins dos seculos.

Acaba a hypocrisia. Acaba principalmente a hypocrisia para comnosco, mais dificil de largar que a propria pelle. Eu minto mais a mim mesmo do que minto aos outros, finges tanto com a tua alma como com a minha. Primeiro ? a hipocrisia que descasca. Acabou! acabou! E com espanto ou?o e desconhe?o a minha propria voz.

? que a morte regula a vida. Est? sempre ao nosso lado, exerce uma influencia oculta em todas as nossas ac??es. Entranha-se de tal maneira na existencia, que ? metade do nosso s?r. Incerteza, duvida, remorso... Nunca se cerra de todo a porta do sepulchro, sentimos-lhe sempre o frio. Agora n?o, a vida pertence-nos. A morte n?o existe, desapareceu a morte...

Ali a um canto um s?r desata a rir, a rir, a rir como nunca ninguem se riu.

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