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Munafa ebook

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Read Ebook: Humus by Brand O Raul

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Ebook has 666 lines and 55286 words, and 14 pages

Ali a um canto um s?r desata a rir, a rir, a rir como nunca ninguem se riu.

E, atravez da pedra d'estas physionomias, transparecem j? outras physionomias: as velhas, como uma roda de aranhas de penante na cabe?a, apertam o circulo em volta da magestosa Theodora. S?o annos de paciencia, d'inveja e de f?l--s?o annos de tragedia. Sobresaltam-se as futilidades que estavam para durar seculos, mas ninguem arrisca ainda um gesto que o comprometa. Teem-lhe obedecido de rastros. O tempo passa, e com o tempo esta lucta entre o inferno e o sonho revestiu-se de cimento e de grandeza.

Obedece e sorri a Eleutheria. Moe, tem moido a vida inteira. Moe-se a si e aos outros.--E o tempo passa...--Obedece e sorri a Adelia, que esperou, tem esperado a vida inteira. A miseria conserva: tem os cabelos pretos. Seis, doze vintens desiquilibram-lhe o or?amento: perde-os todas as noites com um sorriso d'angustia. Obedece e sorri a Porphiria, que ? a peor de todas; ? feita de destro?os e de restos. A aquiescencia tambem est? presente com a D. Restituta, de guardachuva na m?o, acenando sempre que sim ? vida:--Pois sim... pois sim.--Faz-se um pouco surda para s? ouvir o que lhe convem. Nunca diz mal dos outros, nunca repete n'uma casa o que ouviu c? f?ra. ?s vezes, de noite, vira-se revira-se na cama, mas nem s?sinha se explica: suspira. ? na aparencia um pouco tr?pega, um pouco adoentada e surda: tem uma saude de ferro e um filho escondido. E ao passo que a D. Restituta, tendo dito a tudo que sim, tendo dito a tudo e a todos que sim, j? n?o pode dizer, com o mesmo esgare, sen?o que sim:--Pois sim... pois sim...--a Adelia ? rispida: um vestido, um chale, um chapeu de plumas, e o desejo exasperado de toda a sua vida de ter uma sala de visitas com dois casti?aes de prata e um album. O album l? est?, na sala que cheira a bafio, e h? vinte e dois annos que dois paninhos redondos de crochet esperam os casti?aes de prata. Obedecem as figuras secundarias, atentas e imoveis sobre o jogo, dependentes umas das outras, ligadas pelo mesmo interesse. A alma d'esta velhas chegou assim a ser prodigiosa. Fa?am o favor de entrar... Algumas fl?res murchas n'um cantinho com m?fo. Depois paciencia, avareza, depois um vasto campo funerario, onde passa o vento da desola??o como na retirada da Russia. E dominando a paisagem dois ou tres marcos geodesicos. L? no fundo uma p?gada de vida empo?ada e que reflecte o c?o: alli se miram e remiram na sua mocidade. Notem: nenhuma disse uma palavra mais alto. Tudo isto se fez pelo lado de dentro--tudo isto cresceu pelo lado de dentro, de tal forma que se fosse material n?o cabia no mundo, com colunatas, porticos, destro?os e subterraneos, como uma cathedral gotica. Aqui nesta cripta est? o relento, branco e molle, creado na escurid?o e no silencio, branco e molle, branco e sem olhos. Varias sepulturas com estatuas jacentes e, mais adiante, sobre sarcophagos, a Tradi??o e a Formula, que durante os annos que durou a bisca, defenderam a magestosa Theodora d'um envenenamento. Aqui agora--cuidado!--a escurid?o ? viva, a escurid?o ? sonho, ? sonho requentado, como um acrescento de todos os dias, sonho com que n?o podem mais ao lado da vida quotidiana. Como sempre as velhas deitam-se cedo, rezam o ter?o, e antes de dormir juntam um pormenor ao sonho inutil, uma figura aos nichos, um portico aos porticos, um terra?o aos terra?os--at? que adormecem com um sorriso candido e um cheiro pela bocca que tresanda... Aqui com o tempo acrescentou-se um alto relevo esquecido; aqui as figuras s?o figuras de delirio; aqui a nave atinge alturas desconexas sustentada n'um unico pilar; aqui abre-se uma ogiva com vitrais, que esclarece a uma luz funerea um quadro indistincto, e que ? talvez a recorda??o d'um am?r j? morto--porque ellas tambem amaram--aqui o misterio envolve-se em sombras condensadas, onde agoniza um Christo exanime que mete medo. Adiante n'um friso incompleto com uma cidade phantastica, campeia o diabo; depois um remate enfumado, cachorros sustentando uma arcatura, onde se admira a delicadeza e a abundancia de ornamenta??o ; e, n'este canto, mais sonho, entre negrume acumulado, treva viva num buraco de treva, que a si propria se enovela num desespero, at? que n?o cabe na cathedral, irrompe para o lado de f?ra e chega n'um jacto ao c?o... Isto n?o ? a cathedral de Burgos--? a cathedral do f?l e vinagre.

Todas aceitavam, a morte e a vida quotidiana. Resignavam-se. Mas o que esta palavra representa de sonho desfeito em fumo, de coleras inuteis, de inveja inutil, de bol?r e de despeito, tradul-o a paciente D. Herminia por este grito feroz:

--Estou farta senhor padre Ananias! Estou farta de o aturar a si, de aturar os outros, e de me aturar principalmente a mim mesma!

Toda a gente d? a mesma ferocidade, odio e instincto. Espremidos deitam as mesmas paix?es. Uns ignoravam-se. Outros usavam a vida em manias. Outros gastavam-na em grotesco. Outros habituavam-se. A paciencia era pegajosa. A paciencia tinha uma c?r especial, verde desbotado, que mal feria a vista, e um filho, a cobi?a, tal qual como a D. Restituta, que encrespa o pello e se p?e de p? com o guarda-chuva em riste.

Cada s?r me perturba como se contivesse em si o c?o e o inferno. Bem sei que a formula n?o ? inutil: ao contrario a mascara ? indispensavel e ? por ella que nos julgam. Mas, apezar de crearmos o mesmo bol?r e nos sepultarmos ao mesmo tempo com certa comodidade sob alguns palmos de terra, h? qualquer coisa que remexe e que faz parte integrante da vida. At? o escuro se eri?a--at? a grande sombra se deforma.--Muita gente na vida s? conta com a morte. A D. Desideria desata aos ais. E ? com secreta satisfa??o que vejo esfarelar-se este edificio t?o bem construido sobre bases, que pareciam inabalaveis, do interesse, da hipocrisia e das conveniencias... Impelidos por uma mola d?o todos um passo em frente, e h? tres dias que os padres se descomp?em na colegiada sem se chegarem a entender:--L? vae o inferno! l? vae o inferno!--E, efectivamente, d'um instante para o outro, l? vae o inferno que tanto custou a fazer, e outras sombras temerosas reduzidas a cisco. L? vae o scen?rio admiravel e monstruoso, todas as regras, todos os papeis pintados, que atravancavam o mundo, e eram pelo menos metade da nossa existencia. O que tinha uma importancia extrema passou a n?o ter importancia nenhuma; o que parecia indispensavel ? vida, e sem o que se n?o dava um passo na vida, reduziu-se n'um minuto a zero. E outras coisas insignificantes assumiram propor??es enormes... Os padres clamam n'um c?ro desesperado:--Acabou o inferno acabou tudo!--Descomp?em-se na sala da colegiada que deita para o passado--o claustro com um p? de oliveira, e dois tumulos encravados na parede, scenographia para o Hamlet,--s?r ou n?o s?r eis a quest?o... Cheiram a ourina e a ran?o.--A religi?o sem inferno est? perdida.--Mas l? por o homem ter suprimido a morte, n?o deixa de haver inferno--observa o estupido conego Fazenda.--Isso est? claro que n?o deixa, obrigado pela observa??o, mas ? um inferno t?o distante que n?o mete medo a ninguem.--Protesto!--L? vae o inferno! acabou o inferno!

L? vae tambem o c?o, mas o c?o n?o faz falta nenhuma.

J? n?o h? esfor?os que contenham o mundo subterraneo que se p?z a caminho. Aos mortos cheira-lhes a vida, a saque, a infamia. A poeira remexe. Por mais que queiram conter a vida dentro de certos limites, ella extravasa, e vem ? supura??o; por mais que a queiram comprimir estala por todas as costuras. ? inutil. Alem da vida aparente, h? outra vida de odio, de sonho, de interesses occultos. ? a vida, ? o que eu scismo de noite e me sustenta de dia. ? o desejo de exterminio, ? o sonho que arredo e que me pega fuligem: s?o os restos de sonho de toda a gente. Em todas as almas, como em todas as casas, al?m da fachada, h? um interior escondido. Saem dos antros entontecidos e respiram, olham o c?o e respiram. Saem dos buracos e p?em-se a rir, ou falam s?, o que ? a primeira vez que succede na villa. Emergem da noite e v?o deixando cahir os farrapos. Respiram com sofreguid?o, os gadanhos afiam-se-lhes, e o mesmo desejo os domina: a vida! a vida! a vida!

S? esta velha parou de remexer nas cinzas frias. Petrificou-se mais, petrificou-se mais ainda, e a figura curva exprime, na imobilidade tragica, sonho e desespero, d?r e desespero, noite e desespero...

? um erro sup?r que o homem ocupa um espa?o limitado no universo: cada homem vae at? ao interior da terra e at? ao amago do c?o. A parte de cima foi cortada, mas o que resta da alma ? um po?o sem fundo. Uma obscuridade. Por vezes fala a lei e o habito. Intrometem-se coisas abjectas a que n?o sei o nome. Agora ? a vez de impulso--agora ? a vez do interesse. A mania tambem tem os seus direitos. De mais baixo ascendem ordens que se n?o chegam a formular. Des?o mais fundo no po?o e encontro restos sordidos e candura. Por baixo sonho--por baixo fragmentos e gritos... As velhas, por exemplo, n?o s?o m?s, mas teem atraz de si seculos de ruina e de destro?os. H?-as que acordam sempre com a bocca amarga. J? tiveram vinte annos, e cada uma d'ellas suporta uma cauda de desespero, de ilus?es desfeitas, de ilus?es intactas, de desejos irrealisados, que lhes peza como chumbo. Cada velha arrasta comsigo uma por??o de cadaveres... De mais fundo vem outro impulso... Come?o a ouvir vozes que supunha de todo extinctas. Acordam e de tal forma se imp?em, que a D. Procopia desata a falar sem tom nem som. Nessa vaga, n'esse l?do adormecido, jaziam s?res ignorados que veem ? superficie: sente-se no silencio as m?os agarrando-se ?s paredes. Um a um todos deitam raizes tremendas. E a nodoa immensa alastra, a nodoa desordenada, que satura d'oiro a insignificancia e o genio, a nuvem que envolve a D. Inocencia, encrespa os cabellos ? D. Leocadia, fez esquecer a dispepsia ao D. Prior, arreganha os dentes a D. Restituta. Pega-se. Torna uns mais ridiculos, concentra outros. Vae remexer no que estava sepultado h? dois mil annos, no bol?r e no bafio, nas paredes compactas da S?, nos santos immoveis nos seus nichos, na inutilidade e no habito. E doira, doira, doira, doira o Telles e o Reles, doira a hipocrisia e o medo, o egoismo e o interesse. E ao mesmo tempo que os transforma, p?e-nos frente a frente a uma coisa estranha que n?o admite subterfugios--? realidade.

Desaparecendo a conven??o e as palavras, que vae sahir d'aqui de temeroso e de ridiculo? Transformado o mundo, com que olhos vamos v?r o mundo? Tudo isto eram phrases e s? existem instinctos? A honra era uma phrase, o dever uma phrase e a vida um scen?rio? Cada s?r ? capaz de todas as perguntas e de todas as respostas. Escorre todas as tintas e possue todas as c?res, e s? por habito adquirido h? seculos ? que conseguimos olharmo-nos cara a cara, quanto mais alma a alma.

H? dialogos na obscuridade em que se empregam palavras que nunca se usaram, e figuras que j? n?o s?o as mesmas figuras. Todos n?s somos disformes.--Deixem-me! deixem-me!--Agora quando falam j? n?o ? para dizer coisas convencionaes.--Estou ? espera, tenho estado aqui ? espera toda a minha vida.--? espera de qu??--? espera deste hora suprema, ? tua espera...--Mas fala...--N?o posso, s? com gritos ? que posso falar...--A outra coisa temerosa sacode-os...--Tu ouves?--N?o te quero ouvir. Se consegues ficar comigo s?s a s?s, sinto que estou perdido. Tudo que me deu tanto trabalho a construir, alue-se n'um unico minuto. Teimo em me defender--teima em se fazer escutar...--Tu ouves? tu ouves?...--Mas tu n?o existes... Ou tu n?o existes ou s? tu existes no mundo...--Estremecem at? ? base da vida, e, n'este cataclismo, ainda se lhes p?gam coisas vulgares e coisas inuteis--o que se faz e o que se n?o faz, o que se usa e o que se n?o usa, as conveniencias e os habitos ran?osos. H? dialogos formidaveis na obscuridade. H? almas extacticas, h?-as reduzidas ao espanto.--Ouves?--tu ouves?--N?o tenho a que me apegue, mal ouso p?r os p?s. At? agora sabia quem era, ou fingia sabel-o, agora pergunto se sou a D. Leocadia, a D. Procopia e a D. Penaricia? S? posso viver ligado a certas palavras, a certos factos, a certas bases que julgava indestructiveis, e um nada destruiu tudo isto, transformou de todo a vida. O sonho tem outra c?r, e a nodoa de oiro alastra, corroe, mistura-se a nodoas mais escuras e mais fundas, penetra, dissolve, produz logo manchas corrosivas como ulceras.--Phrases ainda elles as teem, mas o peor ? que cada um sente com espanto que j? n?o subverte a verdade. Pergunto a mim mesmo se a deixo morrer, ou se a deixo viver mais duzentos, mais trezentos, mais quatrocentos annos? Agora que a sua vida s? depende de mim, pergunto a mim mesmo se a deixo viver--contra os meus interesses? Eram tremendas as quest?es de dinheiro que a morte resolvia. Quem as resolve agora? Debatem-se em cada consciencia problemas que s? teem uma solu??o--a morte. Excusas de desviar o olhar: s? teem uma solu??o--a morte. E de mais fundo ascendem outras vozes e falam cada vez com maior desespero.--N?o desvies o olhar. Tu ouves?...

Assim como esta clamam as vozes interiores, mais alto, sempre mais alto, imperiosas, as vozes da multid?o que constitue a tua alma. Isto coincide com o grotesco dos homens de calva e ventre gorduroso, meios nus em plena pra?a, sem se atreverem a vestir-se ou a largar de vez os trapos convencionaes; isto coincide com uma primavera antecipada, em que as arvores, sentindo talvez que v?o ser a nossos olhos apenas coisas utilitarias, se apressam a dar fl?r, em que os c?os nocturnos e sem macula parecem ter gelado em azul com fundos d'oiro revolvido...

Alguns p?em-se a caminho e marcham com olhos inquietos. Passa essa sombra tragica, a mulher do Anacleto. Estes dois que foram sempre pessoas consideradas, com assento na existencia, e que usam a cabe?a como quem usa um resplend?r, o Elias de Mello e o Melias de Mello, sentem um baque que os amolga. Porqu?? Elles teem tudo em dia, as contas, os livros, os escrupulos. A pra?a considera-os, Deus considera-os.--A nossa m?e morre...--E n?o tiram o len?o dos olhos.--Veneram-na. Mas o respeito pelos paes s? resiste emquanto os paes respeitam o interesse dos filhos. H? decerto uma lei moral, mas h? sempre por traz uma bocca a pr?gar. Uivos, gritos, exasperos. ? a transforma??o do grotesco em ferocidade, ? a camada de hipocrisia que custa a romper. Imaginem isto: imaginem o lojista em debate com a vida subterranea, o lojista deparando pela primeira vez com uma alma esplendida, e a D. Adelia, de chin? posti?o, fechada n'uma gaiola com a verdade, e aos saltos uma ? outra.

Foi grotesco, come?ou por ser grotesco. Mas escuta-te: ? um mundo que l? tens dentro, ? uma multid?o que se prepara para o assalto. Estava adormecida, acordou. Mete medo. E pr?gam, a?ulam-se, avan?am direitos aos seus apetites, ao saque, ? guerra, ? luxuria. Continham-na arames enferrujados, o medo da morte, o habito de cr?r em Deus phantasmas, cacos d'armadura que derruiram d'um dia para o outro. Descobrir que n?o h? Deus que alegria! P?e a gente ? vontade. Respira-se d'outra maneira. Descobrir que a morte n?o ? inevitavel endurece. O mundo muda d'aspecto. Agora ? que eu contemplo a vida--e me perco na vida. Come?o a ter medo de mim mesmo e n?o me posso olhar sem terror. Que ? isto, este sonho, esta d?r, esta insignificancia entre for?as desabaladas? Onde hei-de p?r os p?s? Eu sou a arvore e o c?o, fa?o parte do espanto, vivo e morro ligado a isto. Sou temeroso e ridiculo. N?o me desligo do turbilh?o azul, sem nome, que me leva arrastado, estonteado, iludido, e ao mesmo tempo discuto, nego e afirmo. Sou ridiculo e construi o mundo. Sonho e acabo reduzido a p?. Sou capaz de tudo e um nada me abate. Sou sordido e futil e n?o tenho limites--vou de mundo a mundo e de espirito a espirito. Dei alma ?s coisas inertes, significa??o ao universo, vida ao que n?o existe, luz ?s estrellas--e no fim acabo grotesco. Sou nada entre o pelago e sem mim tudo se afunda no pelago. O que olhava com indiferen?a mete-me agora medo. N?o posso com o mundo transformado, com outros s?res, e onde n?o me desligo d'uma for?a cada vez maior e mais desabalada.

Preciso de olhar para mim, sou for?ado a olhar para dentro de mim mesmo, a encarar comigo mesmo, e ou desato a rir ou fujo transido de pav?r. N?o me posso comprehender no universo, n?o entendo esta luz insignificante no negrume gelado, nem esta discuss?o interminavel no silencio absoluto, nem este ridiculo, nem esta figura mesquinha que representa o mundo. Com que destino rio ou choro entre o enxurro de oiro e os impulsos tremendos que veem n?o sei d'onde e caminham desabaladamente para um fim que n?o distingo? Tenho medo de mim mesmo! tenho medo de mim mesmo! Nunca o acaso pariu nada t?o monstruoso e t?o grotesco como isto a que se chama a vida. Tenho medo de mim mesmo! Cada vez me sinto mais abjecto e mais transido--cada vez me sinto maior e mais capaz de tudo. N?o me posso olhar nos olhos, com medo de v?r o que nunca vi, em todo o seu horror e em toda a sua nudez. Grito.

Gritos--gritos--gritos ainda sufocados. Ou?o-os na noite imperturbavel, na harmonia esplendida, na arvore e na pedra. Mais gritos no turbilh?o dos mundos, e atraz desse turbilh?o outro maior--e mais gritos ainda. A ternura sou eu que a presto ao absurdo e ? d?r. O que fica na realidade s?o gritos. A harmonia parece immensa porque as coisas n?o teem bocca para pr?gar--ou n?o as sabemos ouvir. Tudo isto se reduz a d?r muda, a d?r intoleravel n'um escantilh?o de desespero--de desespero sem significa??o--de desespero cada vez maior. E sempre outras boccas pr?gam mais alto na noite que n?o tem limites, outras boccas que nem sequer existem. Levanta-se a poeira tragica, a poeira que anda espalhada h? milhares de annos, a poeira dos mortos e a poeira dos vivos. Mais poeira ainda, que vem dos confins, toda a poeira dispersa, que j? foi ternura e desgra?a, poeira desaparecida que foi sonho, poeira inutil que foi d?r.

Os maiores dramas passam-se por?m no silencio.

<> Esta ideia ao menor obstaculo, esta ideia a que eu fujo e a que tu foges, e que ambos arredamos, mas que se obstina at? a proposito dos que mais amamos--esta ideia transforma-se logo em ac??o:--Vou matal-a.

Desapareceu a morte e eis-me aqui preso a esta creatura de olhos tristes fitos em mim. Para sempre! At? as coisas mais bellas se transformam em absurdo e me pesam como chumbo. Peza-me a tua amizade, peza-me o teu am?r--para sempre.

A pobreza e a humildade n?o se toleram para sempre.

A ninharia a poder d'annos e de persistencia imp?e-me respeito. A ninharia um seculo, outro seculo, transforma-se em grandeza.

Quanto menos sinto a morte necessaria para mim, mais a julgo necessaria para o outros. ? um muro que ? for?oso deitar abaixo. Para respirar ? preciso deital-o abaixo.

Muitas vozes, a d'este, a d'aquelle, a de tantos mortos, a imporem-me a sua lei... Agora s? eu falo e com a minha propria voz.

Agora s? eu mando. A vida vou julgal-a com os meus proprios olhos. Vou tomar folego, vou tomar peso ? vida. Sei-a de c?r e salteado. Sei o que valem os preconceitos, as ilus?es e as palavras--sei o que vale o dinheiro. N?o torno a ser iludido.

A vida ? um combate, que s? se vence pela bajula??o, pela manha ou pela audacia--todos os meios s?o bons. Os escrupulos n?o servem para nada, a conven??o tolhe-nos os bra?os. Meia duzia de regras afiadas bastam. Honestidade a precisa para que confiem em n?s--piedade a bastante para que n?o nos assaltem os cofres. F?ra d'isto logro.

Se tenho for?as uso-as.

A vida n'estas bases ? talvez monstruosa, mas n?o posso modifical-as. Aproveito-as. Tiro da vida o que ella me pode dar. Com ilus?es podia-se ser pobre--sem ilus?es s? se pode ser rico.

O peor ? que se passa no silencio. ? a outra coisa que acorda, ? a outra coisa desconhecida que come?a a empurrar o tabique. Deitamos-lhe todos as m?os para o segurar, mas, no escuro e no silencio, a press?o redobra... Est? outra coisa por traz do tabique, outra coisa que eu n?o quiz v?r, e que o sacode com desespero. Bem sei, bem sei que existes! Bem sei que estiveste sempre ao p? de mim. Nunca te deixei discutir comigo. Senti sempre que estava perdido se te deixasse abrir a bocca. H? tragedias de que desviava o olhar, fingindo n?o as v?r. Agora hei-de vel-as por for?a. H? misterios que n?o queria debater e agora se me imp?em. H? vozes que n?o queria escutar e que falam mais alto que a minha voz. H? s?res que n?o queria conhecer e que discutem agora tu c?, tu l? comigo. Tenho de os aceitar. Romperam pelos sepulchros f?ra--despeda?aram todas as tampas. E esta intrus?o na vida modificou de todo a vida.

Cada um v? doirado. Tem de p?r o problema alli na frente e de o resolver. Tem de ir at? ao mais profundo do inferno e at? ? vacuidade do c?o. Cada um tem de se olhar a si mesmo, nu e ridiculo, nu e esplendido. Cada um v? por uma fresta a for?a desabalada, e p?e-se a scismar como Dante com a m?o ferrada no queixo. Temos todos de resolver o problema. Debalde amontoamos inutilidades ou palavras, ahi est? na nossa frente o mundo real, o mundo da verdade, o mundo sem subterfugios. Traz fl?res como uma primavera, traz enxurro. Arrastou-se pelas folhas apodrecidas e pela lama. ? doirado--? feroz. Tem todas as tintas e todas as c?res, e sobre isto phrenesi. ? humilde, leva comsigo no mesmo impeto ternura, d?r e desespero. Est? dorido e vae t?o fundo como a propria desgra?a. Impele-nos. ? a vida e o sonho, ? a tragedia--n?o existe. N?o tem nome. Chama-se a vida e a morte. ? uma coisa absurda. Mete-me medo e extasia-me.

As velhas j? n?o dizem:--Jogo!--Houve uma coisa que se meteu de permeio. Os passos aproximam-se e o esfor?o augmenta. Sinto-lhe o bafo monstruoso, sinto-o mais perto de mim e encostado ao meu s?r.

As velhas ouviram passos apressados dentro das proprias almas, o sonho veio ? tona, e ficam absortas com as m?os agarradas aos queixos e as boccas espremidas a remoer em secco...

O medo acabou, e o escrupulo, a hipocrisia da gente que vive ? roda d'uma ideia sem atrever a encaral-a.--? preciso matal-a!--S?o annos e annos, s?o seculos de inveja paciente, que sobem ? superficie: at? as figuras de pedra ressumam d?r e desespero. Agora metem-me medo. As velhas somem-se, e ficam gritos, fica o espanto, ficam phantasmas.

O que se passa em cada casa, dentro de cada s?r, no fundo de cada po?o? Ouve-se as almas, como se fossem facas, afiarem no escuro. Est?o promptas. Bem sei, falam ainda enteramelado, n?o dizem o que sentem, mas j? caminham segundo o interesse, o odio e o sonho. As resmas de papeladas s?o inuteis, a lei todos os dias se reduz a zero. A nodoa alastra. E agora ? que se v? bem o que cada um trazia dentro de si. Nesta primavera h? duas primaveras. Agora ? que eu comprehendo que as palavras que se pronunciavam eram rituaes, que os gestos, com seculos de existencia, eram necessarios e significativos. As phrases ran?osas das velhas nos dias de enterro, as phrases banaes, eram as unicas capazes de amortecer a d?r; este habito ridiculo de jogar o gam?o um opio, como esta historia que a Bacellar conta a si mesmo, com um ar idiota, um principio de sonho. Tanto vale uma tragedia. ? preciso fugir ? realidade. Comprehendo tudo. O que ellas odeiam no Gabiru ? a sua immensa capacidade de sonho; o que a villa escarnece ? o que a villa inveja. Bem se importa esta roda de velhas, em volta d'uma meza de jogo e o candieiro ao centro, com a bisca lambida: durante algumas horas esqueceram a mediocridade da vida--esqueceram tambem a morte. O chale velho a que a D. Leocadia se achega todas as tardes mesmo no pino do ver?o, pego n'elle e, quanto mais no fio, mais peso tem: est? encharcado de sonho...

PAPEIS DO GABIRU

O que me impede de v?r a tragedia da vida, ? a ninharia da vida.

A alegria ? a luz. A luz suprema ? Deus.

Se elle n?o existe--n?s creamol-o.

Cheguei a um ponto da vida em que nem os outros me interessam, nem eu interesso os outros. N?o falamos a mesma lingua. S? entendo alguns desgra?ados.

Tudo na natureza s?o f?rmas da minha alma. Minha alma passa como uma luz em frente da escurid?o. Extincta s? resta a treva.

Se n?o fosse o habito uma arvore matava-me. N?o posso olhar o c?o sem terror, e tenho de fechar todas as portas para voltar ? vida comesinha.

Para o outro mundo ? preciso uma inicia??o.

Sinto que cada passo que dou ? irremediavel.

Se me perguntassem o que queria ser--queria ser isto mesmo. Assim na eternidade te queria, minha alma, com o mesmo sonho, a mesma vida e os mesmos erros. N?o te troco por outra alma.

N?o h? belleza completa sem uma pontinha de saudade.

A pobreza, a desgra?a e a d?r metem-me medo. Mas que prestigio! Ser alimentado pela desgra?a d? outra fibra, que s? ? desgra?a pertence. Faz-se parte d'uma legi?o esplendida.

H? uma por??o melhor do nosso s?r, n?o h? negal-o. Luz entre residuos, gritos e instinctos. Se n?o existe outra vida, pergunto para qu??

Se fosse possivel suprimir a ilus?o--morriamos todos ? uma. Vivo entre quatro paredes, e entre quatro paredes analizo e commento e construo o universo. Fora d'esse casulo nada existe para mim. Succede, por?m, que da parte de f?ra ? que est? o resto...

Se me perguntam o que ? a vida--n?o sei o que ? a vida. Sei que me devora--sei que tenho ao p? de mim a morte.

Que faz de n?s a vida? A vida gasta-nos, reduz-nos a linhas essenciaes. Habitua-nos a viver, e, quando estamos habituados a viver, suprime-nos.

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